Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9009/12.0TDPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DEOLINDA DIONÍSIO
Descritores: PERDÃO
APLICAÇÃO DA LEI
CONDIÇÃO RESOLUTIVA
VERIFICAÇÃO
TRIBUNAL COMPETENTE
Nº do Documento: RP202403209009/12.0TDPRT-A.P1
Data do Acordão: 03/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O perdão previsto no artigo 3º da lei nº 38º-A/2023, de 02/08, desde que verificados os necessários pressupostos, é aplicado mediante a condição resolutiva, prevista no nº 1 do seu artigo 8º, de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à sua entrada em vigor, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da pena ou parte da pena perdoada.
II – Uma vez aplicado o perdão nesse imperativo circunstancialismo, decorrido o aludido prazo, incumbe ao tribunal da condenação, e que aplicou o perdão, indagar da eventual existência de prática de infracção dolosa que implique o cumprimento da pena perdoada, o qual deverá ocorrer à ordem desse mesmo processo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO PENAL n.º 9009/12.0TDPRT-A.P1

Secção Criminal

Conferência

Relatora: Maria Deolinda Dionísio

Adjuntos: João Cardoso

                 Raul Cordeiro


Comarca: Porto

Tribunal: Porto/Juízo Local Criminal-J4

Processo: Comum Singular n.º 9009/12.0TDPRT

Arguido: AA

Recorrente: Ministério Público

Acordam os Juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:


I - RELATÓRIO

1. No âmbito dos autos supra referenciados, por sentença proferida a 22 de Outubro de 2013, devidamente transitada em julgado a 05/01/2022 (cfr. certidão junta a fls. 2 do apenso físico do recurso) o arguido AA, com os demais sinais dos autos, foi condenado na pena de 200 (duzentos) dias de multa à taxa diária de €6,00 (seis euros), posteriormente convertida em 133 (cento e trinta e três) dias de prisão subsidiária, pela prática de 1 (um) crime de falsidade de testemunho, previsto e punível pelo art. 360º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Penal.

2. Na sequência da publicação da Lei n.º 38-A/2023 o Ministério Público promoveu que a pena fosse perdoada mediante a condição resolutiva prevista no art. 8º e que, após um ano, fossem realizadas diligências (v.g. a junção de CRC actualizado e pesquisa de processos pendentes) com vista a apurar da eventual verificação da condição, mas viu esta última pretensão indeferida com o fundamento de que tal competiria ao eventual processo onde ocorresse condenação posterior.

3. Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso terminando a sua motivação com as seguintes conclusões: (transcrição)

1. Através do douto despacho recorrido, decidiu-se que a competência para declarar o preenchimento da condição resolutiva do art. 8º/1 da Lei 38-A/2023 não pertence ao Tribunal e ao processo onde o perdão foi concedido, mas ao processo e ao Tribunal que condenar o arguido pela prática do crime doloso após a concessão do perdão.

2. Tratando-se duma condição resolutiva e não duma revogação do perdão, a sua verificação gera efeitos retroactivos sobre a decisão de perdão – arts.º 270º e 276º do Código Civil.

3. Ora, se a competência para conceder o perdão pertence ao um certo Tribunal, a competência para destruir retroactivamente os respectivos efeitos também tem que pertencer ao mesmo Tribunal.

4. A parte final do 8º/1 da Lei 38-A/2023 apenas esclarece que a resolução do perdão implica um cúmulo material de penas, questão que se enquadra e se pode resolver na fase de execução das penas, sem que para isso seja minimamente necessária a destruição retroactiva de efeitos de decisões anteriores.

4. Admitido o recurso, por despacho datado de 11/12/2023, não houve resposta.

5. Neste Tribunal da Relação a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido do provimento do recurso louvando-se nos fundamentos que dele constam e que reforçou ainda com pertinente argumentação.

6. Cumprido o disposto no art. 417º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, nada mais foi aduzido.

7. Realizado exame preliminar e colhidos os vistos legais, vieram os autos à conferência que decorreu com observância do formalismo legal, nada obstando à decisão.


***

II - FUNDAMENTAÇÃO


1. Consoante decorre do disposto no art. 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e é jurisprudência pacífica [cf., entre outros, Acórdãos do STJ de 20/12/2006, Processo n.º 06P3661, in dgsi.pt, e de 3/2/1999 e 25/6/1998, in B.M.J. 484 e 478, págs. 271 e 242, respectivamente], sem prejuízo das questões de conhecimento oficiosos, as conclusões do recurso delimitam o respectivo objecto e âmbito do seu conhecimento.

Assim, in casu, a única questão suscitada é a da competência para a tramitação processual visando apurar da eventual verificação de condição resolutiva imposta ao perdão de uma pena.


***

2. O teor da decisão recorrida é o seguinte: (transcrição)

Não tendo sido paga a pena de multa e não sendo possível a sua execução coerciva, impõe-se a conversão da pena de 200 dias de multa em 133 dias de prisão subsidiária art.º 49º/1 do Código Penal -, sendo devido um desconto de 9,02 € por cada dia de privação da liberdade - art.º 491º-A/3 do Código de Processo Penal.

O arguido tinha 30 anos, à data da prática do último facto criminosa (ponto 10 dos factos provados) - art.º 2º/1 da Lei 38-A/2023.

Esta conversão é objecto de perdão, nos termos do art.º 3º/2, al. b), do predito diploma.

 Assim, consideram-se perdoados os dias de prisão subsidiária – sem prejuízo da condição resolutiva contemplada no art. 8º do mesmo diploma legal.

No mais, analisado melhor o disposto no citado art. 8º, nada se determina, porquanto tal compete ao eventual processo onde ocorra condenação posterior – “ (…) caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da pena ou parte da pena perdoada” – nada mais havendo a determinar.

D.N.


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3. Apreciação


Consoante evola de anteriormente exposto, entende a M.ma Juíza a quo, com base na previsão do art. 8º, da Lei n.º 38º-A/2023, que, uma vez proferido despacho a perdoar a pena aplicada ao arguido, se encontra finda a sua actividade jurisdicional uma vez que os demais actos e trâmites processuais incumbirão ao tribunal onde, eventualmente, venha a ocorrer condenação posterior.

Salvo o devido respeito, não alcançamos o fundamento legal de tal interpretação, nem se vê como é que a expressão extraída do art. 8º – “ (…) caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da pena ou parte da pena perdoada” – justificaria a alteração de competência entre tribunais da mesma hierarquia, possibilitando a revogação do decidido por determinado tribunal de 1ª instância por um outro da mesma categoria.

Aliás, o teor do segmento normativo invocado não é sequer inédito tendo sido utilizado, nos exactos termos, no art. 4º, da Lei n.º 29/99, de 12/05, que igualmente consagrou o perdão genérico e amnistia de pequenas infracções.

Ora, a tal propósito pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça[1] nos termos assim sumariados:

«(…)

IV - Não pode entender-se que o art. 4.º, in fine, da Lei 29/99, de 12-05, ao estatuir que “(...) o perdão é concedido com a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infracção dolosa nos 3 anos subsequentes à data da entrada em vigor da presente lei, caso em que à pena aplicada à infracção superveniente acrescerá a pena ou parte da pena perdoada”, visa determinar o cumprimento da pena anteriormente perdoada, e cujo perdão foi revogado, à ordem do processo onde foi julgada a infracção superveniente.

V - Tal interpretação conduziria à violação directa de regras de competência dos tribunais ou as do instituto da “conexão de processos” estabelecidas no diploma central do processo penal.

VI - É certo que se trata de lei que concede “perdão genérico e amnistia pequenas infracções”, sendo, nessa medida, uma providência de excepção, devendo interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações ou restrições que nela não venham expressas, ainda que daí resultem situações de injustiça relativa.

VII - Mas, também por isso, sempre a solução que consistisse em subverter regras processuais estabilizadas na lei geral, na doutrina e na jurisprudência, demandaria um especial cuidado de texto, que desfizesse a perplexidade de tal alteração, também conforme ao princípio da estabilidade da competência dos tribunais.

VIII - Ora, o elemento literal do art. 4.º da Lei 29/99, não satisfaz essa prudência, limitando-se, apenas, a estabelecer (ou a reafirmar) o modo e a sequência do cumprimento sucessivo de penas autónomas entre si, não curando, assim, de alterar regras de competência material e funcional dos tribunais em matéria penal.»[2]

Em sentido idêntico, relativamente ao presente diploma legal, pode ler-se a fls. 41 da Revista Julgar On line[3] que: «A Lei ao determinar que à pena aplicada à infração superveniente acresce “o cumprimento da pena ou parte da pena perdoada” visou reforçar que se está perante uma sucessão de penas, não se estabelecendo aqui qualquer regra de competência para o cumprimento da pena, resultante da revogação do perdão».

Aliás, nem poderia ser de outra maneira.

Veja-se que, por vicissitudes processuais inerentes ao funcionamentos dos diversos serviços de justiça e tribunais pode até suceder que a condenação aplicada num processo posterior determinante da verificação da condição estabelecida seja integralmente executada antes de ser conhecida a condenação na pena que veio a ser perdoada (por exemplo devido ao atraso no envio dos boletins à DSIC ou erro no seu preenchimento), não se vislumbrando, então, qual seria o fundamento para a extensão da competência do tribunal da ulterior condenação quando viesse a conhecer-se da existência do processo inicial onde operaria a verificação da condição resolutiva com a consequente revogação do perdão e cumprimento da pena perdoada.

Do mesmo modo, a seguir-se a tese do tribunal a quo, o passo seguinte seria o do arquivamento dos autos, ficando o ónus de conhecimento e decisão da causa de resolução atribuído a tribunal indefinido, alheio e desconhecedor de tal interpretação, inexistindo qualquer possibilidade, real e efectiva, de fiscalização do cumprimento da lei no segmento controvertido.

Neste conspecto, é por demais evidente que assiste razão do Digno Recorrente não podendo subsistir a decisão recorrida.


***

III - DISPOSITIVO


Em face do exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto conceder provimento ao recurso do Ministério Público e revogar a decisão recorrida que deve ser substituída por outra que dê seguimento aos trâmites necessários e convenientes à fiscalização da verificação da condição resolutiva imposta ao perdão da pena.

Sem tributação - art. 513º, n.º 1, a contrario, e 522º, do Cód. Proc. Penal.

Notifique.


*

[Elaborado e revisto pela relatora – art. 94º, n.º 2, do CPP[4]]


Porto, 20 de Março de 2024
Maria Deolinda Dionísio
João Pedro Pereira Cardoso
Raúl Cordeiro
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[1] Acórdão de 27/09/2006, Proc. n.º 06P2951, Rel. Soreto de Barros, in dgsi.pt.
[2] Nesta esteira e no mesmo local, vide também o Acórdão da RE de 07/11/2006, Proc. n.º 2344/07.1, Rel. Gomes de Sousa.
[3] Pedro José Esteves de Brito in “Notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude”.
[4] O texto do presente acórdão não observa as regras do acordo ortográfico – excepto nas transcrições que mantêm a grafia do original – por opção pessoal da relatora.