Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1336/23.8T8AMT-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI MOREIRA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DO INSOLVENTE A SER EXCLUÍDO DA CESSÃO AOS CREDORES
SUBSÍDIO DE FÉRIAS
SUBSÍDIO DE NATAL
Nº do Documento: RP202403191336/23.8T8AMT-C.P1
Data do Acordão: 03/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Nos termos do art. 239º, nº 3, do CIRE cumpre ao julgador, no seu prudente arbítrio, definir casuisticamente o rendimento do insolvente excluído da cessão aos credores, o qual tem por limite mínimo aquele montante que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.
II – É pertinente a utilização, como referência, do valor do salário mínimo nacional, para a definição desse limite mínimo.
III - Se for fixado como rendimento indisponível o valor da remuneração mensal mínima garantida e o insolvente demonstrar a necessidade de dispor mensalmente da quantia correspondente, é adequado considerar que o rendimento indisponível deve salvaguardar também a disponibilidade dos valores dos subsídios de férias e de Natal, pois que estes valores se integram no conceito de remuneração mensal mínima garantida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. N.º 1336/23.8T8AMT-C.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este
Juízo de Comércio de Amarante - Juiz 3

REL. N.º 846
Relator: Rui Moreira
Adjuntos: Artur Dionísio do Vale dos Santos Oliveira
Dra. Lina Castro Baptista


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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

1. RELATÓRIO

Nos presentes autos de insolvência relativos a AA, foi liminarmente admitido o seu pedido de exoneração do passivo restante, apesar da oposição dos credores Banco 1..., S.A. – Soc. Aberta, que declarou ser desfavorável a tal pedido, defendendo a fixação de um SMN como rendimento indisponível, e o Banco 2..., S.A., embora sem fundamento fáctico para impedir o prosseguimento do incidente.
No dispositivo de tal decisão, quanto à fixação do rendimento do insolvente que haverá de ficar indisponível para a fidúcia, foi definido o seguinte:
“Mais se determina que, atentas condições pessoais do/a devedor/a, que aqui se dão por reproduzidas para todos os efeitos legais e não impugnadas, fica salvaguardado para aquele/a, durante o período de cessão - os referidos três anos após o encerramento do processo, início que tem lugar com a prolação deste despacho – artº 237º, alínea b), do CIRE- na redação dada pela Lei nº 9/2022, de 11-01-, a quantia correspondente a UM salário mínimo nacional x12meses, acrescido das despesas médicas e medicamentosas comprovadas (receitas e recibos) referentes à sua patologia cardíaca que excedam o valor de €120,00/mês – considerando que o valor do s.m.n. acautela as despesas correntes apresentadas e até esse valor passa assegurara cuidados de saúde – devendo o/a/s devedor/a/s ajustar as despesas à sua condição atual, em face do beneficio que irá/ão ter a final em detrimento dos credores, ficando o/a/s mesmo/a/s obrigado/a/s a observar as imposições previstas no nº 4 do artº 239º do CIRE, não se encontrando fundamento para ser fixado em valor superior.
O cálculo deve ser anual - e não mês a mês – (…)”
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O insolvente recorreu da referida decisão, concluindo nos seguintes termos:
I. O Recorrente apresentou-se à Insolvência tendo a mesma sido decretada em 11 de outubro de 2023. Por despacho datado de 4 de janeiro de 2024, foi declarado o encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente.
II. O Tribunal “a quo” decidiu no despacho inicial de exoneração do passivo e considerando que o insolvente formulou este pedido aquando da apresentação à insolvência, está dentro do mencionado limite temporal. Assim sendo, não se impôs a sua rejeição por intempestividade.
III. Termos em que, ao abrigo do disposto no artigo 239.º, do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresa, deferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante apresentado pelo insolvente e, em consequência, determinou que durante os 3 anos posteriores ao encerramento do processo, o rendimento disponível do insolvente – AA, –, isto é, todos os rendimentos que lhe advenham, com exclusão dos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 239.º, do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresa, se consideram cedido ao Sr. Administrador de Insolvência destes autos, na qualidade de fiduciário, durante o período de cessão, ficando o insolvente obrigado a observar as imposições previstas no n.º 4 do artigo 239.º, do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresa.
IV. O tribunal a quo fixou ao Insolvente como rendimentos disponível, a quantia correspondente a UM salário mínimo nacional x 12 meses, acrescido das despesas médicas e medicamentosas comprovadas (receitas e recibos) referentes à sua patologia cardíaca que excedam o valor de €120,00/mês.
V. O Recorrente não concorda com o teor do despacho proferido pela Meritíssima Juiz do Tribunal “a quo”, ao estabelecer que o valor fixado como rendimento disponível atribuído ao insolvente será UM salário mínimo nacional e terá que ser multiplicado por 12 meses, correspondente desta forma como sendo razoavelmente necessário para o sustento do Recorrente, o aqui recorrente entende que tal fixação coloca em causa a subsistência do Insolvente, uma vez que, é uma pessoa com bastantes problemas de saúde, não obstante o tribunal a quo ter acrescido as despesas médicas e medicamentosas comprovadas (receitas e recibos) referentes à sua patologia cardíaca que excedam o valor de €120,00/mês – considerando que o valor do salário mínimo nacional acautela as despesas correntes apresentadas e até esse valor passa assegurar cuidados de saúde, tal alegação não corresponde à verdade.
VI. Isto porque, o Recorrente muitas vezes vê-se obrigado a ter que recorrer a médicos privados por conta da doença que padece por não encontrar soluções rápidas no sistema nacional de saúde, que neste momento se encontra caótico e que o insolvente deve evitar face à fragilidade da sua saúde, e ao contacto com imensos vírus, inclusive e como resulta dos autos o insolvente está proibido de trabalhar, e por esse motivo foi aconselhado a pedir reforma antecipada, e vive apenas do seu salário.
VII. Pelo que nessa esteira, deverá ser revogado o despacho que considera que o rendimento disponível, deve ser multiplicado por 12 meses ao ano, porém o recorrente discorda e entende que deverá ser-lhe atribuído 1,5 salário mínimo nacional e ser considerado por 14 meses, e o que exceder deverá entregar ao fiduciário.
VIII. O despacho recorrido aplicou em nosso entender mal o direito, e viola ou não fez a melhor interpretação do disposto no artigo 1.º, 13.º e 59.º n.º 2 al. a) da Constituição da República Portuguesa, bem como do ponto i) alínea b) do n.º 3, do artigo 239.º e 241.º do CIRE, e 70.º do Código Civil. Senão vejamos,
IX. De facto, ao entender-se desta forma, estaria o Insolvente a ver a sua situação económica agravada quando em comparação com outros insolventes que recebam os respectivos subsídios em duodécimos, inclusive, nunca existiu dolo, nem mesmo negligência por parte do Insolvente, uma vez que, necessita desse montante para fazer face às suas despesas diárias, e permite-lhe equilibrar as suas contas.
X. Ou seja, temos que o montante necessário à sobrevivência do Insolvente será de 1,5 salário mínimo, todavia, há que atentar que tal remuneração mensal garantida ocorre 14 vezes no ano, e não apenas em 12, pelo que não poderemos calcular mês a mês, mas sim o rendimento auferido durante um ano tal como definiu o Tribunal a quo.
XI. E durante os 12 meses, os trabalhadores e pensionistas em geral recebem 14 salários/pensões. Ao não considerar por 14 meses o Recorrente teria que entregar ao fiduciário os subsídios de férias e de Natal, parcelas de retribuição do trabalho e/ou de pensão, que não são considerados como uns extras para umas férias, ou um Natal melhorados, mas apenas e tão só porque estes montantes permitem equilibrar as suas contas anuais, ainda que o façam com muito sacrifício. Estando o Insolvente privado de recorrer ao crédito, é do conhecimento geral que a maior parte das pessoas, aproveitam a altura em que recebem os subsídios para pagarem os seus seguros, e colocarem as suas contas em dia, entre outros.
XII. A situação do Insolvente é igual à de tantos outros nacionais portugueses que têm que fazer a sua vida com aquilo que foi definido pelo estado como salário mínimo à existência com dignidade, olvidando, porém dois factos: por um lado, que essa retribuição mínima é multiplicada por 14 meses e não por 12 meses; por outro lado, o disposto no ponto i) da alínea b) do n.º 3, do art. 239.º do CIRE. Neste sentido confira-se os seguintes Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27-02-2018 relatado pela Sr.ª Desembargadora Higina Castelo, disponível em www.dgsi.pt, e de 24-04-2018 relatado pela Sr.ª Desembargadora Ana Paula Vitorino, disponível em www.pgdlisboa.pt.
XIII. Perante o atual quadro de inflação, as despesas inerentes à vivência de qualquer pessoa (gás, eletricidade, alimentação, água, vestuário, higiene pessoal) estão a sofrer um incremento acentuado, a que o Tribunal a quo não deveria ter ficado indiferente na interpretação e aplicação do disposto no citado ponto i) da alínea b) do n.º 3, do art. 239.º do CIRE.
XIV. V. Exas. por certo serão ainda sensíveis à dificuldade existente atualmente pelo facto de uma pessoa que aufira o salário mínimo nacional não conseguir sobreviver sozinha, face ao escalamento dos produtos alimentícios, das rendas, a medicação nas farmácias, a eletricidade, entre outros.
XV. Se em determinados meses o rendimento do insolvente – por razões várias – não chegar a alcançar o entendido como necessário à sua subsistência terá necessariamente de ocorrer uma compensação relativamente aqueles em que o exceda, sob pena de aquela ficar comprometida.
XVI. O artigo 235.º do C.I.R.E estatui que se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência, ou nos três anos posteriores ao encerramento do processo.
XVII. Nesse período de três anos, designado período de cessão, o insolvente tem que entregar ao fiduciário, para satisfação dos direitos dos credores e encargos do processo, o seu rendimento disponível, integrado por todos os recursos patrimoniais que aufira, a qualquer título, excepto os créditos previstos que tenham sido cedidos a terceiro e o que seja razoavelmente necessário para o sustento do devedor e do seu agregado familiar, com o limite do triplo da remuneração mínima mensal garantida (RMMG), para o exercício da sua actividade profissional e para outras despesas que, a requerimento do devedor, venham a ser consideradas pelo juiz, no próprio despacho inicial ou em momento ulterior (artigo 239.º do CIRE).
XVIII. Nesse contexto, cabe ao juiz, logo no despacho inicial, definir “o que seja razoavelmente necessário para um sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar”. É um conceito aberto, que procede do reconhecimento do princípio da dignidade humana, de sagração constitucional (artigo 1.º), a partir do qual se afere o montante pecuniário indispensável a uma existência condigna, a avaliar face às particularidades da concreta situação do devedor, numa efectiva ponderação casuística do quantitativo excluído da cessão dos rendimentos disponíveis.
XIX. O Recorrente entende que o rendimento disponibilizado é constituído pela RMMG multiplicada por 14. De facto, sendo a RMMG recebida 14 vezes no ano, podemos afirmar que o seu valor anual é constituído pelo montante mensal multiplicado por 14 (artigos 263.º e 264.º/1 e 2 do Código do Trabalho), e, portanto, o mínimo necessário ao sustento minimamente digno do insolvente não devendo ser inferior à remuneração mínima anual. Interpretação que é conformada pelo próprio conceito de Retribuição Mínima Nacional Anual (RMNA, a que alude o artigo 3.º do decreto-lei 158/2006, de 8 de agosto, que define “o valor da retribuição mínima mensal garantida (RMMG), a que se refere o n.º 1 do artigo 266.º do Código do Trabalho, multiplicado por 14 meses”.
XX. Na verdade, os subsídios de férias e de Natal são parcelas de retribuição do trabalho e não extras para umas férias ou um Natal melhorados. A retribuição mínima nacional anual é constituída pela RMMG multiplicada por 14, pelo que a RMMG garantida mensalmente disponibilizado corresponde à àquela RMMG multiplicada por 14 e dividida por 12.
XXI. O mesmo é dizer que este valor médio mensal que o trabalhador ou pensionista dispõe para o seu sustento corresponde àquele que o Estado fixa como o mínimo necessário ao sustento minimamente digno do trabalhador. Transpondo este princípio para o valor do rendimento necessário ao sustento minimamente digno do insolvente, teremos de admitir que esse valor é retido 14 vezes ao ano ou, então, cada uma das parcelas mensais não deverá ser inferior à RMMG multiplicada por 14, cujo produto é dividido por 12.
XXII. No que respeita ao insolvente na sequência do seu problema de saúde, cardíaco relacionado com um aneurisma, e por ter um sistema imunitário extremamente débil durante o inverno tem que ligar um aquecedor no seu quarto para o manter minimamente aquecido para evitar resfriados, e o recurso aos hospitais, o insolvente guardava os subsídios que auferia para estas situações, quando recebesse os acertos da conta de eletricidade, da mesma forma que atualmente se encontra sem auferir qualquer vencimento, até lhe ser diferida a pensão de reforma, as economias que dali advieram permitem-lhe fazer face às despesas que agora surgem.
XXIII. Verifica-se, salvo o devido respeito pela decisão do Tribunal a quo, que se mostrará especialmente difícil para o Insolvente dar resposta a todas as despesas, levando em consideração o montante indicado (1 salário mínimo nacional) e que o mesmo foi fixado apenas por doze meses, razão pela qual será impossível para o insolvente ter alguma “folga” orçamental pois, sem o pagamento dos subsídios de férias e de natal, terá que efetivamente viver mês a mês com o dinheiro contado e com enormes dificuldades para se sustentar só por si, e não irá conseguir.
XXIV. O valor sobrante após o pagamento das despesas, é impossível de proporcionar a qualquer pessoa um sustento condigno, quanto mais a uma pessoa com comorbilidades já diagnosticadas bem como as que advirão por conta dela. De facto a apresentação à insolvência tem que representar sacrifícios para o Insolvente e rigor financeiro, é pacífico que esses sacrifícios não podem ultrapassar todos os limites, deixando a pessoa numa situação tão desesperante como é a de não ter dinheiro sequer para se alimentar. E, se há despesas que podem sofrer compressão, não é o caso das despesas com tratamento de doenças e alimentação condigna, sob pena de se ofender o princípio da dignidade humana.
XXV. O montante fixado, bem como a exclusão do pagamento dos subsídios de férias e de Natal, é claramente insuficiente para que o Insolvente possa viver diariamente com dignidade e suportar todas as suas despesas, deixando o mesmo abaixo do critério legal.
XXVI. É de elementar justiça, que o montante a ser excluído da cessão seja de pelo menos 1,5 salário minino, contado 14 vezes por ano, para que fique salvaguardada a vivência minimamente condigna do Insolvente.
XXVII. Neste sentido foram proferidos os seguintes Acórdãos: Ac. Tribunal da Relação
de Lisboa de 11.10.2016, Carla Câmara (ora 1ª adjunta), 1855/14.7CLRS-7, www.dgsi.pt, para o qual remetemos nos termos e para os efeitos do Artigo 663.º, n.º 5, do Código de Processo Civil. Acórdãos proferidos nos proc. n.º13777/13.4T2SNT, de 31.01.2017, 3036/16.6T8BRR, de 07.03.2017,5820/17.4T8LSB-C.L1, de 23.01.2018.
XXVIII. De tal acórdão (1855/14.7CLRS-7) resultam duas ideias-chave e decisivas:
i. O montante equivalente a um salário mínimo nacional constitui o limite mínimo de exclusão e
ii. Nos casos em que o agregado familiar do insolvente integra outros elementos, há que apelar a um critério objetivo consistente na escala da OCDE, a «escala de Oxford», para determinação da capitação dos rendimentos de um agregado familiar, nos termos da qual o índice 1 é atribuído ao 1.º adulto do agregado familiar e o índice 0,7 aos restantes adultos do agregado familiar, enquanto às crianças se atribui sempre o índice 0,5.
Aplicando-se os referidos critérios, temos que o montante necessário à sobrevivência do insolvente será de € 557 (valor do salário mínimo para 2017), actualizado para € 580 a partir de 1.1.2018 (Decreto-lei n9 156/2017, de 28.12).
Todavia, há que atentar que tal remuneração mensal garantida ocorre 14 vezes no ano e não 12. Conforme se refere no Acórdão desta Relação de 27.02.2018, Higina Castelo, proferido no Processo 1809/17.1T8BRR.L1: «Sendo a remuneração mínima mensal garantida recebida 14 vezes no ano, e constituindo o salário mínimo anual 14 vezes aquele montante mensal (art. 263.º e 264.º, n.º 2, do CTrabalho), o mínimo necessário ao sustento minimamente digno não deverá ser inferior à remuneração mínima anual.
XXIX. O mesmo decidiram Ac. da Relação de lisboa de 13-03-2018, no âmbito do processo 92/17.3T8LSB-B.L1 7ª Secção, pelos Desembargadores: Luís Filipe Pires de Sousa - Carla Inês Câmara e Acórdão da Relação de Lisboa de 24-04-2018, no âmbito do processo n.º 3553/16.8TABRR-E.L1 7ª Secção, em que são Desembargadores: Luís Filipe Pires de Sousa - Carla Inês Câmara, e o Acórdão da Relação do Porto de 22.05.2019, no âmbito do processo n.º 1756/16.4T8STS – D, em que são desembargadores Maria Cecília Agante, José Carvalho Rodrigues Pires.
XXX. Acórdão da Relação do Porto de 22.10.2019, no âmbito do processo n.º 206/17.3T8AMT.P1, do qual resulta o seguinte sumário: “A retribuição mínima nacional anual é constituída pela RMMG multiplicada por 14, pelo que a RMMG garantida mensalmente disponibiliza correspondente à aquela RMMG multiplicada por 14 e dividida por 12. O mesmo é dizer que este valor médio mensal que o trabalhador dispõe para o seu sustento corresponde àquele que o Estado fixa como mínimo necessário ao sustento minimamente digno do trabalhador.
Fazendo uma adequação principiológica ao valor do rendimento necessário ao sustento minimamente digno da insolvente, há que concluir que esse valor é retido 14 vezes ao ano ou, cada uma das parcelas mensais não deverá ser inferior à RMMG multiplicada por 14, cujo produto é dividido por 12.”
XXXI. O Acórdão proferido pela 3a secção, desta Relação do Porto, o Acórdão datado de 23 de Janeiro de 2020, no âmbito do processo n.º 875/16.1 T8AMT-E.P1, considerando como “rendimento necessário ao sustento minimamente digno do insolvente/Apelante deverá ser retido 14 vezes ao ano ou, cada uma das parcelas mensais não deverá ser inferior à RMMG multiplicada por 14, cujo produto será dividido por 12, devendo consequentemente excluir os subsídios de Natal e de férias como rendimento a ceder ao fiduciário.”
XXXII. E por fim o recente Acórdão da Relação de Lisboa datado de 24.05.2023, no processo 19030/22.5T8SNT-B.L1-1, em que é relatora Fátima Reis Silva. O tribunal a quo não fez esta precisão.
XXXIII. Assim face ao exposto, deverá o despacho ora in crise, ser alterado por outro, que considere que a retribuição mínima nacional anual concedida ao Recorrente de UM SALÁRIO E MEIO (S.M.N) multiplicado por 14, e dividido por 12 meses, sendo neles englobados os subsídios de férias e de natal, como rendimentos necessários à subsistência do agregado familiar.
XXXIV. Caso V. Exas. assim o não entendam e mantendo o despacho recorrido atribuindo ao recorrente UM salário mínimo nacional o mesmo deverá ser multiplicado por 14 meses e dividido por 12 meses, sendo neles englobados os subsídios de férias e de natal, como rendimentos necessários à subsistência do agregado familiar.
Termos em que, nos melhores de Direito, e sempre com o V/ mui douto suprimento, em face de tudo o que ficou exposto deverá este Venerando Tribunal dar provimento ao recurso, e em consequência ordenar que o despacho recorrido seja revogado e substituído por outro que considere como rendimento disponível, todo aquele que exceder o valor de 1,5 salários mínimos nacionais multiplicado por catorze meses, a iniciar-se com o trânsito do despacho de encerramento do processo, por forma a serem excluídos os subsídios de férias e de Natal, como rendimentos disponíveis a ceder ao Fiduciário.
Caso V. Exas. Venerandos Juízes Desembargadores mantenham o despacho ora in crise concedendo ao insolvente UM salário mínimo nacional terão necessariamente que multiplicar por catorze meses, a iniciar-se com o trânsito do despacho de encerramento do processo, por forma a serem excluídos os subsídios de férias e de Natal, como rendimentos disponíveis a ceder ao Fiduciário.
Assim decidindo, Venerandos Desembargadores, será, então e finalmente, feita Justiça!
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O recurso foi admitido, como de apelação, com subida em separado e com efeito devolutivo.
Foi depois recebido nesta Relação.
Cumpre decidir.


2- FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 639º e 635º nº 4, do C.P.Civil.
A questão a resolver, extraída de tais conclusões, consiste na determinação do valor do rendimento do insolvente que lhe deve ser garantido para satisfação das necessidades de sobrevivência segundo um padrão de vida digno, ficando assim indisponível para cessão à fidúcia.
Verifica-se, todavia, uma óbvia nulidade da decisão recorrida, por ser completamente omissão quanto aos factos em que funda o subsequente dispositivo.
Com efeito, apesar de aludir a questões de saúde que condicionam as necessidades económicas do insolvente, constata-se que o tribunal se limita a uma genérica remissão para “condições pessoais do/a devedor/a, que aqui se dão por reproduzidas para todos os efeitos legais e não impugnadas”.
A opção por uma solução tão singela, se bem que seja pragmática, consubstancia claramente a nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. b) do CPC, porquanto ficaram por especificar os factos que o tribunal considerou provados. Especificar, como vem referido no art. 615º, nº 1, al. b) do CPC não é remeter genericamente para um elenco de factos constante de qualquer peça anterior). De resto, tal expressão é congruente com a constante do nº 3 do art. 607º do CPC, que impõe ao juiz que discrimine os factos provados.
Consideramos, porém, estar este tribunal de recurso em condições de suprir tal nulidade (nos termos previstos no art. 665º, nº 1 do CPC), pois que o tribunal recorrido afirmou que os factos alegados haveriam de ser tidos por provados em razão da falta da sua impugnação.
Tais factos são, então, os alegados pelo requerente, que se passam a descrever:
1. O Requerente é casado, mas encontra-se separado de pessoas e bens, desde o dia 2 de fevereiro de 2018.
2. O Requerente tem a sua residência habitual na Rua ..., ..., ..., Felgueiras.
3. O Requerente esteve de baixa médica de setembro de 2020, até setembro de 2023, sendo essa a única fonte de rendimento, até então.
4. O Requerente aguarda pelo diferimento da sua pensão de reforma por invalidez.
5. O Requerente vive em casa da sua ainda esposa, juntamente com o filho.
6. O Requerente possui as despesas normais inerentes à habitação, nomeadamente, água, luz, gás, cerca de €200,00 (duzentos euros), bem como despesas com alimentação e vestuário, numa média de €500,00 (quinhentos euros).
7. O Requerente possui como despesas de saúde mensais no montante de € 140,00 a 200,00€.
8. O Requerente foi gerente de várias empresas de calçado, tendo recorrido por diversas vezes ao crédito bancário junto de várias instituições bancárias, tendo inclusive e para conseguir financiamento para as suas empresas, prestado o seu aval pessoal.
9. O Requerente sempre foi cumprindo com as suas obrigações bancárias, sem atrasar os pagamentos bancários, mesmo durante o período da pandemia por COVID19. Acontece que,
10. Em agosto de 2020, o Requerente sofreu um Enfarte Agudo de Miocárdio, seguido de um cateterismo cardíaco, levando a um internamento por um longo período de tempo.
11. Em setembro de 2020, foi operado tendo sido realizado uma revascularização do miocárdio X3.
12. No final do ano de 2020, o Requerente foi novamente internado por episódios de angina instável, e suspeita de aneurisma.
13. Numa das deslocações ao hospital, o Requerente foi contaminado com Covid-19.
14. Levando a que o seu estado de saúde piorasse.
15. Desde essa altura que a vida do Requerente se tornou uma constante ida e vinda de hospitais, exames, internamentos e cirurgias, ficando a sua vida paralisada.
16. O Requerente atualmente não consegue realizar a sua vida normalmente, uma vez que, se sente sempre cansado, com dificuldades em respirar, em caminhar, não consegue estar de pé mais de 20 minutos.
17. Além disso não consegue realizar as tarefas normais do seu dia-a-dia.
18. Inclusive foi advertido pelos médicos de que não poderia exercer qualquer tipo de actividade laboral sob pena de poder vir a sofrer um ataque cardíaco fulminante.
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Na decisão recorrida, o tribunal considerou que será suficiente para assegurar ao insolvente condições dignas de vida, nesta fase da sua existência, o valor de “UM salário mínimo nacional x12meses, acrescido das despesas médicas e medicamentosas comprovadas (receitas e recibos) referentes à sua patologia cardíaca que excedam o valor de €120,00/mês”.
Por sua vez, o ora apelante defende que esse montante deve ser o de uma vez e meia o valor do salário mínimo nacional, por 14 meses, só o excedente havendo de ser entregue ao fiduciário.
Importa, então, sindicar o mérito da decisão em crise, quanto ao valor fixado como rendimento indisponível para a cessão, o que, simultaneamente, revela aquele que ficará disponível para a satisfação dos fins da insolvência, maxime o da limitada satisfação dos créditos verificados.
O que está agora em causa é, em suma, a concessão de um benefício significativo ao insolvente, que lhe facultará, no termo do período de cessão (que haverá de ser de 3 anos, atenta a nova redacção do art. 239º do CIRE), o fim da sua responsabilidade pela satisfação de obrigações contraídas perante os seus credores. E isso com o provável prejuízo para tais credores, que lhe confiaram o seu dinheiro na expectativa de que cumprisse, para com cada um deles, as correspondentes obrigações, expectativa essa que acabarão por ver, em alguma medida, provavelmente gorada.
É esse o princípio geral deste instituto, consagrado no art. 235º do CIRE.
A especificidade do problema a resolver dispensa uma análise descritiva do seu enquadramento jurídico e da justificação sociológica das soluções adoptadas pelo legislador a tal propósito, tendo-se por assente que a norma cuja aplicação está em causa é a constante do art. 239º do CIRE.
Aí se dispõe, no seu nº 3: “Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:
a) (…)
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.”
Pressupõe este regime que sejam cedidos ao fiduciário nomeado, para os fins da insolvência, todos os rendimentos auferidos pelo insolvente no período de (agora) três anos, com as excepções enunciadas.
Entre estas excepções sobressai que, dos rendimentos auferidos pelo devedor e cedidos para satisfação dos efeitos da insolvência, deve ser retirada uma parte adequada a facultar “O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional” [al. b), § 1)]. Este rendimento excluído da cessão – designado geralmente como “rendimento indisponível” corresponde à parcela desses rendimentos suficiente e indispensável a suportar economicamente a existência do devedor e seu agregado familiar.
Deste preceito, como é recorrentemente assinalado pela jurisprudência, resulta um limite máximo para essa parcela: um valor equivalente ao triplo do salário mínimo; e um limite mínimo: aquele que for necessário para, nas circunstâncias concretas do caso, assegurar um “sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar”.
No que toca a tal limite mínimo, o legislador optou claramente pela consagração de um conceito aberto, por via de cujo preenchimento esse limite deve ser identificado, assim salvaguardando as idiossincrasias de cada situação, de cada devedor, de cada agregado familiar, e tudo sem que se perca de vista o fim do processo de insolvência em que este incidente se insere e que é, até onde for possível, o ressarcimento dos credores.
Passando à análise da factualidade apurada, constata-se a parcimónia das condições de vida do requerente, absolutamente condicionadas pela limitação dos rendimentos de baixa médica, em situação que eventualmente evoluirá para uma situação de reforma por invalidez, dada a situação clínica complexa em que se encontra, e pelas despesas naturalmente inerentes ao seu sustento, ainda integradas por essa sua condição clínica, determinante de custos de assistência médica e medicamentosa. Mas também se constata não suportar custos de habitação, sendo que os valores que afirmou gastar em água, luz e gás e em alimentação e vestuário (200,00€ e 500,00€) não traduzem outros custos com o agregado familiar, sem prejuízo de se registar a omissão de qualquer notícia de outros rendimentos do mesmos agregado, que poderão minorar a parcela de despesas a cargo do insolvente.
Em todo o caso, e mesmo no desconhecimento do valor a que poderá ascender a pensão de reforma do requerente quando lhe vier a ser atribuída, pois que os autos são omissos quanto a esse elemento, o que se constata é que o valor de um salário mínimo, que ascende actualmente (em 2024) a 820,00€ por mês , é suficiente para garantir a satisfação das despesas reconhecidas ao requerente, tanto mais que lhe é garantido um montante complementar no caso de as suas despesas médicas ultrapassarem o valor de 120,00€ por mês.
No contexto dos autos, a reserva de uma quantia de 1.230,00€ mensais para o insolvente (como pretendido no recurso, correspondendo a 1,5 vezes salário mínimo nacional em vigor), dos rendimentos que venha a auferir futuramente, prejudicaria por certo a entrega de qualquer valor ao fiduciário.
O recurso ao valor do salário mínimo nacional como critério para a determinação da quantia em questão, critério este seguido normalmente pela jurisprudência e, no caso concreto, também pelo tribunal a quo, apresenta-se como a melhor solução. Com efeito, se um Estado compreende na sua ordem jurídica um tal instituto, assume por essa forma que tal valor, correspondendo à remuneração mínima de um trabalhador, há-de ser o minimamente necessário para a sua dignificação enquanto indivíduo, enquanto trabalhador, enquanto membro activo dessa comunidade.
Admite-se que uma solução estruturada por referência a este valor, na hipótese de o requerente conseguir obter uma entrada mensal superior, não deixará de constituir um factor de condicionamento das suas condições de vida, durante o período de três anos. Mas esse condicionamento sempre será mínimo, mesmo em comparação com as suas actuais condições de vida. Acresce que essa consequência não é imputável a qualquer dos seus credores que, mesmo nessas circunstâncias, não deixarão de ver frustradas totalmente as suas expectativas de recebimento dos seus créditos (que ascendem a 113.083,40€) , tanto mais que nenhum bem foi apreendido para a insolvência, tendo o processo sido encerrado sem qualquer liquidação de património.
Por outro lado, a quantificação do valor indisponível em 1230,00€, como pretendido pelo apelante, o que só seria viável na hipótese de vir a elevar os seus rendimentos até esse valor, assegurando-lhe a manutenção dessa totalidade do seu eventual rendimento, além de não reservar quase nenhum valor dos seus rendimentos para os fins da insolvência, obliterando a realização do direito dos credores também por essa via, constituiria uma desresponsabilização patrimonial próprias pela situação financeira construída. Tal solução não deixaria de ser desproporcionada, por salvaguardar apenas um dos interesses em prejuízo total dos demais, e assim desconforme à ordem jurídica.
Entendemos, pois, na ponderação e compatibilização possível de todos os interesses em presença e em concordância com o tribunal recorrido, ser adequado fixar o rendimento indisponível para os credores, a reservar para o insolvente, num montante equivalente ao valor de uma vez o salário mínimo nacional (actualmente de 820€), que permitirá a sua vivência, durante o período de cessão, em condições de mínima dignidade humana. Esta solução atenta quer na circunstância de o ora apelante não suportar outras despesas que não as suas próprias, pois não tem responsabilidades perante outrem, sem esquecer que outras despesas há que não podem ser repartidas, tudo em termos já ponderados aquando da identificação dos custos de vivência que suporta.
Certo é que esta solução permitirá satisfazer apenas no limite todas as despesas que se verificou serem agora suportadas mensalmente pelo insolvente. Porém, haverá de ser este a adaptar as suas condições de vida aos meios que lhe ficam disponíveis.
Improcederá, quanto a esta questão, o presente recurso de apelação.
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Diferente questão é de saber se o montante a salvaguardar para o insolvente há-de ser aferido relativamente a 12 ou a 14 meses. Ou seja, se lhe devem ser salvaguardados 9.840,00€ ou 11.840,00 por ano, respectivamente (a acrescer com o valor das despesas médicas que ultrapassem 120,00€ mês).
A questão a resolver não coincide com aquela que diversa jurisprudência dos tribunais superiores foi chamada a resolver, perante a indefinição, na decisão de 1ª instância, sobre se a salvaguarda de determinado valor para o insolvente se referia a um valor mensal estrito, ou a um valor mensal que considerasse a circunstância de a remuneração mínima garantida dever ser paga 14 vezes por ano.
No caso, porém, essa indefinição não existe: o tribunal recorrido considerou que seria suficiente, para o sustento do devedor em condições de dignidade um valor de 820,00€ por mês, num total de 9.840,00€ por ano. Assim, no caso de o insolvente lograr auferir qualquer valor a mais, por exemplo por receber 11.840,00 por ano, correspondentes ao montante do salário mínimo anual compreendendo subsídios de férias e de Natal, teria de o entregar ao fiduciário, pois que se concluiu bastarem-lhe aqueles 9.840,00€ por ano, para assegurar o seu sustento em condições de dignidade.
Neste contexto, não cabe interpretar ou complementar a decisão recorrida, para decidir se a referenciação do rendimento indisponível ao salário mínimo nacional deve fazer-se a um valor mensal multiplicado por 12 ou por 14 vezes (este, depois, dividido por 12, para apurar o montante mensal a salvaguardar).
O que cabe é sindicar a solução concretamente definida, que considerou ser suficiente, para garantir a subsistência do insolvente em condições de dignidade, o valor de 9.840,00 por ano, isto é, o valor concreto de 820,00€ mensais multiplicado por 12 meses.
Acima, quando se discutiu se se justificava a fixação do rendimento indisponível para a cessão em um salário mínimo ou em um salário e meio, um dos argumentos usados foi o de que o legislador considera que o montante do salário mínimo (ou remuneração mensal mínima garantida) correspondendo à remuneração mínima de um trabalhador, há-de ser o minimamente necessário para a sua dignificação enquanto indivíduo, enquanto trabalhador, enquanto membro activo dessa comunidade.
Todavia, essa ponderação tem por pressuposto que um tal valor é pago 14 vezes por ano. Ou seja, se tal argumento usa como referência o valor do salário mínimo, para o ter por suficiente, também tem de incluir o pressuposto de que o que é suficiente é o valor mensal pago por 14 vezes. E isso porquanto tal é a medida do salário mínimo, que um trabalhador há-de receber 14 vezes por ano.
Cumpre recordar a declaração de voto de vencido subscrita pelo Sr. Cons. João Cura Mariano, no Ac. do Tribunal Constitucional nº 770/2014 (https://www.tribunalconstitucional.pt /tc/acordaos /20140770.html) que, apreciando a mesma questão embora no âmbito da impenhorabilidade de rendimentos, enunciou com clareza este entendimento, a que não podemos deixar de aderir: “(…) Para superar as dificuldades da determinação do que é o mínimo necessário a uma subsistência condigna, o Tribunal Constitucional, relativamente aos rendimentos auferidos periodicamente, impôs a impenhorabilidade das prestações periódicas, pagas a título de regalia social ou de pensão, cujo valor global não seja superior ao salário mínimo nacional, quando o executado não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda (Acórdão n.º 177/02, acessível em www.tribunalconstitucional.pt) Aproveitou-se, assim, o facto do salário mínimo nacional conter em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e por ter sido concebido como o “mínimo dos mínimos”, para utilizar esse valor, sujeito a atualizações, como aquele, a partir do qual, qualquer afetação porá em risco a subsistência condigna de quem vive de uma qualquer prestação periódica.
No caso das pensões pagas mensalmente com direito a subsídio de férias e de Natal, a impenhorabilidade tem que salvaguardar qualquer uma das suas prestações, incluindo os subsídios, quando estas têm um valor inferior ao do salário mínimo nacional. E o facto de, nos meses em que são pagos aqueles subsídios, a soma do valor da pensão mensal com o valor do subsídio ultrapassar o valor do salário mínimo nacional, não permite que tais prestações passem a estar expostas à penhora para satisfação do direito dos credores, uma vez que elas, por serem pagas no mesmo momento, não deixam de ser necessárias à subsistência condigna do seu titular.
Não é o momento em que são pagas que as torna ou não indispensáveis à subsistência condigna do executado, mas sim o seu valor, uma vez que é este que lhe permite adquirir os meios necessários a essa subsistência.
Aliás, quando o Tribunal Constitucional escolheu o salário mínimo como o valor de referência para determinar o mínimo de subsistência condigna teve necessariamente presente que o mesmo era pago 14 vezes no ano, circunstância que tem influência na fixação do seu valor mensal, tendo entendido que o recebimento integral de todas essas prestações era imprescindível para o seu titular subsistir com dignidade. Foi o valor dessas prestações, pagas 14 vezes ao ano, que se entendeu ser estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador.”

Nas concretas circunstâncias do caso, ao insolvente foi fixado como rendimento indisponível o valor de um salário mínimo. Apurou-se que tens especiais necessidades decorrentes da sua condição clínica. Apurou-se ainda que as suas necessidades mensais consomem integralmente o valor que recebe nesse período de tempo. Não se teve por justificado que devesse manter valor superior, a fim de se tentar garantir a realização, ainda que diminuta, de alguns dos interesses da insolvência.
Por isso, tal como acima se justificou, devemos admitir que um tal valor deve corresponder àquele que compreende também os montantes que o insolvente vier a receber a título de subsídios de férias e de Natal, pois que estes integram o que na citada declaração de voto se designa como o «…“mínimo dos mínimos” a partir do qual, qualquer afetação porá em risco a subsistência condigna de quem vive de uma qualquer prestação periódica». Em suma, se se lhe atribui o mínimo, deve entender-se que este mínimo corresponde ao que o próprio legislador pressupôs no conceito de mínimo: o valor que actualmente corresponde a 820,00€ por mês, mas percebido 14 vezes por ano.
Procederá, em conclusão, a apelação nesta parte, cumprindo alterar a decisão recorrida em conformidade, fixando-se como rendimento indisponível a quantia correspondente a uma remuneração mínima mensal garantida, calculada nos termos descritos, ou seja: valor mensal do salário mínimo multiplicado por 14 e sucessivamente dividido por 12.
No presente, tal valor a salvaguardar mensalmente será de 820,00 x 14 : 12 = 956,70€.
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Sumariando, nos termos do art. 663º, nº7 do Código do Processo Civil
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3 – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em conceder parcial provimento à presente apelação, em razão do que a alteram fixando como rendimento indisponível ao insolvente AA a quantia correspondente ao valor de uma remuneração mínima mensal garantida, multiplicada por catorze e dividida por doze.
No mais, se confirma a decisão recorrida.

Custas pelo apelante e pela massa insolvente, na proporção de metade.





Porto, 19 de Março de 2024
Rui Moreira
Artur Dionísio Oliveira
Lina Baptista