Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
31/22.0T9VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LÍGIA TROVÃO
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
PENA SUSPENSA
CONDIÇÃO DE PAGAMENTO
ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: RP2024032031/22.0T9VFR.P1
Data do Acordão: 03/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL / CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O art. 14º do RGIT é lei especial relativamente às normas dos arts. 51º a 54º do Cód. Penal, que prevê uma especial e única modalidade de suspensão da execução da pena de prisão para os crimes fiscais (artºs 1º, 3 e 10 RGIT)
II – O RGIT recusou a possibilidade de a pena suspensa ser «singela» - isto é, sem condições / deveres / injunções / obrigações / proibições / regras de conduta e prescreveu no art 14º nº 1 do RGIT que a pena de substituição «Suspensão da Execução da Pena de Prisão» fosse «… sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, dos montantes dos benefícios indevidamente obtidos …»
III - O AUJ do STJ nº 8/2012 de 12 de setembro de 2012 publicado no D.R. 1ª Série, nº 206, de 24/10/2012, veio dar um contributo para a interpretação do disposto no art. 14º do RGIT nas situações em que o tribunal, em face da opção entre a alternativa punitiva da pena de multa ou da pena de prisão, se decidiu pela aplicação da pena de prisão (e, restando-lhe ainda decidir sobre a sua modalidade) equacionar a aplicação da pena substitutiva da suspensão da execução da pena de prisão, para o que deverá dispor das informações sobre as condições pessoais, económicas e financeiras do condenado (mas não com o objetivo de apurar se ele tem, ou não, capacidade económica para pagar as quantias que ficaram por entregar ao Estado, seu titular, e legais acréscimos).
IV - O AUJ do STJ nº 8/2012 de 12 de setembro de 2012, ao estabelecer a necessidade do «juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura» não se está a referir à capacidade económica de o condenado ter ou não de pagar ao Estado a prestação tributária em dívida e acréscimos legais, já que por força do disposto no nº 1 do art. 14º do RGIT essa suspensão da execução da pena é sempre/obrigatoriamente condicionada ao pagamento da totalidade da quantia em dívida e legais acréscimos à margem da condição económica pessoal do arguido/responsável tributário, sem possibilidade de qualquer graduação ou de uma qualquer redução, mas antes a querer significar que, como se diz no texto do AUJ nº 8/2012, “a margem de liberdade do julgador situa-se no justo ponto e momento em que pode optar pela substituição, mas para o fazer tem de estar na posse do pleno das informações possíveis, de modo a bem fundamentar a opção. Feita a escolha, a adoção da medida de substituição, cessa a liberdade de punição, porque imposta é a subordinação à condição; o juiz fica subordinado, amarrado, ao incontornável passo seguinte, que é impor a subordinação ao pagamento. Mas porque assim é, será nesse primeiro momento, em que é possível o exercício de liberdade, que poderá avaliar do sucesso da medida e mesmo cogitar sobre o regresso ao estádio anterior e pensar sobre a escolha de pena que temporariamente, como mero exercício de raciocínio, não foi tida então em consideração e tomada como boa solução. Por último, o julgador sempre terá uma palavra a dizer sobre o prazo de pagamento, para mais no âmbito de uma norma especial”.
V – É, por isso, manifestamente ilegal, a formulação pelo arguido, condenado como autor material de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social p. e p. pelos arts. 107º ex vi do art. 105º nº 1 do RGIT, de qualquer pedido de redução, para montante inferior ao das quantias em dívida à Segurança Social e legais acréscimos, como condicionante da suspensão da execução da pena de prisão aplicada na sentença, por reporte aos seus rendimentos mensais e encargos familiares, por contrariar abertamente o texto da norma especial do nº 1 do art. 14º do RGIT que condiciona essa suspensão “ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais (…)”.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 31/22.0T9VFR.P1

Comarca de Aveiro

Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira – Juiz 3

Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I - RELATÓRIO

No âmbito do processo (comum) nº 31/22.0T9VFR que corre termos pelo Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira – Juiz 3 do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, por sentença proferida em 04/05/2023 e depositado na mesma data, foi decidido:

“Face ao exposto, julga-se a acusação pública e o pedido de indemnização civil procedentes por provados e, em consequência, o tribunal decide:

- condenar a sociedade arguida A..., LDA. pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto e punido pelos art. 7.º n.º1 e 105.º n.º 1, ex vi do 107.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho), na pena de 400 (quatrocentos) dias de multa à taxa diária de 8,00€ (oito euros), num total de 3.200,00€ (três mil e duzentos euros);

- condenar o arguido AA pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto e punido pelos art. 105.º n.º 1, ex vi do 107.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho) na pena de 10 (dez) meses de prisão, suspensa na sua execução por 5 (cinco) anos, com a condição de pagar ao Instituto da Segurança Social a quantia de 25.000,00€ (vinte e cinco mil euros), comprovando documentalmente nos autos o pagamento anual da quantia de 5.000,00€ (cinco mil euros);

- Condenar os arguidos / demandados A..., LDA. e AA no pagamento ao demandante Instituto da Segurança Social, I.P. da quantia de 161.234,88€ (cento e sessenta e um mil duzentos e trinta e quatro euros e oitenta e oito cêntimos), acrescido de juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos sobre o montante de capital de 138.599,93€ (cento e trinta e oito mil quinhentos e noventa e nove euros e noventa e três cêntimos);

- Absolver os arguidos A..., LDA. e AA da condenação no pedido de perda das vantagens do crime deduzido pelo Ministério Público.


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Custas pelos arguidos, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC’s, reduzida a metade em face da confissão – cfr. art. 344.º n.º2 alínea c) e 513.º n.º3 do C.P.P. e art. 8.º n.º9 do R.C.P., por referência à Tabela III anexa àquele diploma.

Custas na parte cível pelos demandados – cfr. art. 527.º n.º1 e 2 do C.P.C. ex vi art. 523.º do C.P.P.”.


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Não se conformando, o arguido AA interpôs recurso da sentença em 05/06/2023, finalizando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

A) O arguido não está conformado com a pena concreta aplicada, por demasiado penalizadora, atento as circunstâncias socioeconómicas que estes apresentam, bem como, as condições atenuantes que deverão merecer relevo para a determinação da pena, o que em nosso entender não o foram.

B) Com todo e o devido respeito – que é muito – a condição de suspensão aplicada ao arguido do pagamento dos 25.000,00€, num prazo de 5 anos, com pagamentos anuais de 5.000,00 € é desproporcional e inadequada.

C) O arguido encontra-se reformado e recebe uma quantia mensal de 1.700,00 €, conforme provado no item 13 da matéria de facto.

D) Esta quantia da reforma do arguido é o seu único meio de subsistência.

E) o art. 51º, nº 2 do C.P. estatui que “Os deveres impostos não podem em caso algum representar para o arguido condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir”.

F) Neste sentido, entendemos que, no caso em apreço, a condição aplicada ao arguido, no âmbito da prisão suspensa, não é razoável, uma vez que, o cumprimento daquela condição é de difícil – senão impossível – concretização para o arguido.

G) Neste seguimento, a aplicação de pena de 10 meses de prisão suspensa pelo período de 5 anos, sob a condição de pagamento do referenciado valor, poderá estar apenas a diferir, no tempo, a prisão efectiva do arguido por aqueles 10 meses, sendo certo que, não lhe será possível, dadas as suas condições económicas, pagar tal quantia.

H) Neste sentido, vide Ac. Do STJ nº 8/2012, para fixação de jurisprudência, que alude o seguinte: “(…) Daí a relevância fundamental da existência de um juízo de prognose da razoabilidade, no âmbito da condição a que fica sujeita a suspensão da execução da pena de prisão.

Sob pena de esta (condição) ser absolutamente desprovida de sentido ou alcance, quando a priori resultar perfeitamente inviável, em face das reais e concretas condições económicas e financeiras do arguido, consideradas à data da respectiva condenação.”

I) Assim, salvo melhor opinião, e tendo em conta o que supra se expôs, sempre será de aplicar ao arguido como condição de suspensão, o pagamento de uma quantia não superior a 20.000,00 €, em cinco anos, com um valor anual de 4.000,00 €, cumprindo os critérios da razoabilidade impostos pelo juízo de prognose que reclama o art. 51º, nº 2 do C.P., o que se pede ao Tribunal “Ad Quem”.

J) Ao não respeitar estes princípios, a sentença violou a Constituição da Republica Portuguesa, pelo que a inconstitucionalidade que aqui se argui e deve ser declarada, com a consequente revogação da Sentença

recorrida por Acórdão que determine nova condição de suspensão da pena de prisão aplicada ao arguido, por observância dos princípios constitucionais da proporcionalidade, adequação e razoabilidade, decididos no AC. de Fixação de Jurisprudência nº 8/2012.

K) Nesta conformidade, deverá o Tribunal Ad Quem alterar a quantia da condição de suspensão para valor nunca superior a 20.000,00 €, e prestação anual aplicada, não devendo a mesma ser superior 4.000,00€, tendo em conta a situação socioeconómica do arguido e os princípios da proporcionalidade, adequação e razoabilidade.

Termos em que, deve a Sentença proferida em 1ª instância ser revogada pelos Venerandos Desembargadores, por Acórdão que reduza o valor da condição suspensiva aplicada ao arguido, para valor nunca superior a 20.000,00€, e prestação anual aplicada, não devendo a mesma ser superior 4.000,00€, tendo em conta a situação socioeconómica do arguido e os princípios constitucionais da proporcionalidade, adequação e razoabilidade,

Pois só assim se concretizará a integral JUSTIÇA!...”.


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O recurso foi admitido em 09/06/2023.

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A este recurso respondeu o Ministério Público em 23/06/2023, pronunciando-se pelo não provimento do recurso, concluindo nos seguintes termos (transcrição):

I. O arguido foi condenado pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto e punido pelos art.º 105.º n.º 1, ex vi do 107.º do Regime Geral das Infrações Tributárias (Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho) na pena de 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por 5 anos, com a condição de pagar, ao Instituto da Segurança Social a quantia de 25.000,00€, comprovando documentalmente nos autos o pagamento anual da quantia de 5.000,00€;

II. O arguido está reformado, aufere a quantia mensal de 1.700,00€ a título de pensão de reforma; habita com a sua mulher, a qual está reformada e aufere pensão de reforma no valor de 1.300,00 €; habitam em casa própria; tem 2 filhos maiores e como

habitações literárias tem o 11.º ano de escolaridade;

III. Afetar 21% do seu rendimento anual pessoal ao pagamento da dívida ao Instituto da Segurança Social afigura-se-nos manifestamente justo e razoável, porque facilmente exequível atendendo aos encargos e rendimentos do arguido que resultaram provados em julgamento;

IV. Na realidade, o arguido ainda continua a dispor mensalmente de valor superior a 2 salários mínimos nacionais, sendo que não tem encargos relevantes para além de despesas correntes com alimentação, vestuário, água, luz, gás, etc…;

V. Essa percentagem ainda diminui substancialmente se atendermos à totalidade dos rendimentos do arguido, englobando o valor da pensão da sua mulher, pois neste caso apenas seria afetado 11,9% do rendimento anual do casal ao pagamento da dívida ao

Instituto da Segurança Social;

VI. O Tribunal “a quo” não violou o disposto no disposto nos artigos 50º, n.º 2 e 51º, n.º 2 do Código Penal, o AUJ do STJ n.º 2/2012 e os princípios constitucionais da proporcionalidade, adequação e razoabilidade.

Termos em que, não deve o recurso interposto pelo ora recorrente merecer provimento,

mantendo-se integralmente a sentença proferida “.


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Nesta Relação, a Exmª Sra. Procuradora-Geral Adjunta, em 25/11/2023 emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso, referenciando em síntese que: “ Como decorre da leitura da sentença não é verdade que ao decidir da forma supra referida, a Mmª juiz na 1º instancia não tenha atentado na jurisprudência do acórdão do STJ de fixação de jurisprudência nº 8/2012, sendo expressivas as passagens da sentença em que a juiz faz apelo a essa razoabilidade e proporcionalidade.

Na verdade, na fixação da condição da suspensão da pena o tribunal a quo teve em atenção o vencimento do arguido e do seu agregado familiar, as suas condições de vida e gastos existentes e, como não poderia deixar de ser o montante global com o qual o arguido e a empresa por si representada se locupletaram à custa da Segurança Social, (138.539,39 €), circunstancias que determinaram a aplicação do computo de 25.000 euros, a pagar em 5 anos, valor que corresponde a cerca de 11% do rendimento anual do arguido e esposa, o que demostra que o arguido se encontra em condições de poder cumprir a obrigação pecuniária, na quantidade e no tempo determinados na sentença.

Tal como refere o colega na 1ª instância: “porventura, terá o arguido que alterar alguns aspetos no seu quotidiano que implicarão alguns sacrifícios, mas isso não se afigura irrazoável ou desproporcional… De facto, foi o arguido quem se colocou nessa situação ao ter cometido um crime que teria sempre um reflexo negativo na sua vida, em caso de condenação,

O recurso não merece provimento “.


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Foi cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do CPP, não tendo havido resposta.

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Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foi realizada a conferência.

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II - FUNDAMENTAÇÃO

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respetiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.

No presente recurso, atendendo às conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação e considerando as questões de conhecimento oficioso, é apenas uma a questão a apreciar e a decidir:

- saber se a condição imposta para a suspensão de execução da pena de prisão é desproporcional e inadequada por falta de capacidade económica para proceder ao pagamento da quantia de 5.000,00€ por ano e a redução do valor da condição de suspensão.


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A sentença recorrida na parte que aqui releva, tem o seguinte teor (transcrição parcial):

Factos provados

Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos com relevância para a decisão a proferir:

1. A arguida A..., Lda tem como objecto indústria de camionagem, exploração de carreiras de serviço público de aluguer ou de excursões e de qualquer outra em que os sócios acordem e o número de contribuinte para a Segurança Social ....

2. Desde a constituição da sociedade arguida, cabia ao arguido AA dirigir e organizar a sociedade arguida, dando ordens e instruções e controlando toda a actividade, chamando a si a iniciativa e a responsabilidade por todas as decisões do giro da empresa, nomeadamente perante trabalhadores, fornecedores, Autoridade Tributária e Segurança Social.

3. No exercício das suas funções, impendia sobre o arguido a obrigação de, em nome da sociedade arguida, reter no acto de pagamento das remunerações mensais aos trabalhadores por sua conta as cotizações legais a entregar à Segurança Social, montantes esses que, bem sabiam, pertenciam à Segurança Social e a ela deveriam ser entregues.

4. Assim, actuando em nome e no interesse da sociedade arguida e nos seus próprios interesses pessoais, o arguido, apesar de ter efectuado as retenções a que alude o artº 42º, nºs 1 e 2 do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Providencial da Segurança Social (Lei nº 110/2009, de 16-09) aos trabalhadores da sociedade arguida e a si próprio, na qualidade de membro do órgão estatutário, não entregou esses montantes nos cofres da Segurança Social, utilizando tais quantias em benefício próprio, como se lhes pertencesse.

5. Com efeito, o arguido, em representação da arguida sociedade, reteve mensalmente do valor das remunerações dos trabalhadores e do membro do órgão estatutário, as respectivas cotizações legais e não as entregou nos cofres da Segurança Social, entre os meses de Maio de 2017 a Fevereiro de 2018, Maio de 2018 a Março de 2020 e Outubro de 2020 a Janeiro de 2021, os montantes que a seguir se discriminam:

a. Dos trabalhadores


b. Do arguido/membro de órgão estatutário:

6. Apesar de o arguido ter procedido ao desconto destas quantias nos vencimentos dos trabalhadores, não as entregou à Segurança Social mensalmente, entre o 10º e 20º dia do mês seguinte àquele a que as cotizações respeitavam, nem nos noventa dias seguintes, integrando a totalidade das cotizações retidas aos salários pagos aos trabalhadores e a si próprio, enquanto membro do órgão estatutário da arguida, num montante global de 138.599,93€ no património da sociedade arguida.

7. Os arguidos foram notificados a 07 de Fevereiro de 2022 para, no prazo de 30 dias, procederem ao pagamento da quantia descrita em 6), nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.º, n.º 4, alínea b) do R.G.I.T, no entanto, o pagamento da quantia em dívida e seus juros não foi efectuado até ao termo desse prazo.

8. Ao actuar da forma descrita, o arguido agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que os montantes que reteve como cotizações obrigatórias eram devidos à Segurança Social e a esta deviam ser entregues, não devendo ser gastos em seu benefício e da sociedade arguida, tal como fez e que, por esse motivo, não podia agir de tal modo.

9. Ao assim proceder não desconhecia o arguido o carácter proibido e criminalmente punido das suas condutas.

10. O arguido actuou da forma descrita em virtude das dificuldades económicas atravessadas no período em causa.

11. O valor referido em 6) permanece por regularizar junto do Instituto da Segurança Social.

12. Os arguidos confessaram integralmente e sem reservas os factos de que vinham acusados.

13. O arguido está reformado, auferindo a quantia mensal de 1700 EUR a título de pensão de reforma; habita com a sua mulher, a qual está reformada e aufere pensão de reforma no valor de 1300 EUR; habitam em casa própria; tem 2 filhos maiores; como habitações literárias tem o 11.º ano de escolaridade.

14. A sociedade arguida encontra-se a laborar, com situação económica estável; tem 25 trabalhadores e 31 viaturas ao seu serviço (as quais se encontram penhoradas); labora em instalações próprias.

15. O arguido sofreu já a seguinte condenação transitada em julgado:

a. PCS 201/14.4T9VFR, foi condenado pela prática, em 1/08/2008, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, por sentença transitada em julgado em 27/10/2016, na pena de 14 meses de prisão suspensa na execução por 5 anos, julgada extinta em 20/03/2022.

16. A sociedade arguida sofreu já a seguinte condenação transitada em julgado:

a. PCS 201/14.4T9VFR, foi condenado pela prática, em 1/09/2008, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, por sentença transitada em julgado em 27/10/2016, na pena de 300 dias de multa, julgada extinta em 8/08/2017.


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Factos não provados

Com relevância para a decisão da causa, inexistem factos não provados.


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Motivação

O tribunal valorou a globalidade da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, conjugada com os elementos probatórios já constantes dos autos, tudo ao abrigo do princípio da livre valoração da prova previsto no art. 127.º do C.P.P.

Desde logo, o arguido AA prestou declarações, tendo admitido que a sociedade de que era gerente não procedeu à entrega à Segurança Social das cotizações no período em causa, visto que a empresa estava a passar por sérias dificuldades financeiras decorrentes da quebra de facturação, o que foi agravado com a subsequente penhora dos saldos de contas bancárias e de créditos de clientes por parte da Segurança Social. Esclareceu ainda o arguido que, no período em causa nos autos, atenta a necessidade de proceder ao pagamento de salários e a fornecedores, assegurando o funcionamento na empresa, optou por não entregar os valores à Segurança Social, utilizando tais quantias no giro da sociedade. Ademais, esclareceu ainda que, apesar de tais dificuldades financeiras, a sociedade continua a laborar, procurando regularizar a sua situação fiscal. Em suma, o arguido confessou a factualidade na íntegra, não havendo dúvidas que as quantias deduzidas aos salários dos trabalhadores e dos membros dos órgãos estatutários não entregues à Segurança Social acabaram por ser afectas ao pagamento de outras despesas correntes da empresa, o que fez bem sabendo que lesava tal instituto na correspondente quantia, de forma livre, voluntária e consciente das consequências de tais decisões ao nível da tesouraria da sociedade. Já quanto aos valores actualmente em dívida relativamente a tais pagamentos, o arguido sustentou que foram já efectuados diversos pagamentos através das ditas penhoras, mas admitiu que o valor em causa nos autos ainda permaneça por cumprir.

Foi ainda valorada a seguinte prova documental: mapa de valores de cotizações deduzidos e não entregues, a fls. 9 e 10; notificações para pagamento a fls. 28 a 37 e 260 a 262; declarações de remunerações e extracto global da declaração de remunerações, a fls. 82 a 105; recibos de vencimentos, a fls. 114 a 186 a) e 190 a 259, e certidão de registo comercial actualizada da sociedade arguida e documentos juntos pelo assistente na fase de julgamento.

Em face do exposto, o tribunal deu como provados todos os factos constantes da acusação, nomeadamente a ausência de entrega das quantias em causa à Segurança Social e a utilização de tais valores no giro da sociedade gerida pelo arguido.

No que concerne aos concretos valores em causa, o tribunal atendeu aos mapas de valores de fls. 9 e 10, inexistindo qualquer dúvida de que as quantias dadas como provadas dizem respeito a salários efectivamente pagos pela sociedade no período em causa. Ademais, valorou-se o depoimento da testemunha BB, técnica superior em exercício de funções na Equipa Corrente da Segurança Social do Centro Distrital ..., a qual demonstrou ter conhecimento directo dos montantes em dívidas e que esclareceu que, à data do julgamento, na conta corrente junto da Segurança Social e quanto às cotizações aqui em causa, o total do montante em dívida permanecia igual, visto que as penhoras e outros pagamentos que tinham sido realizados ao instituto foram imputados noutras dívidas da sociedade, à Segurança Social. Em face do exposto, apurou-se que tal valor mantém-se, actualmente, na quantia de 138.599,93€, a título de cotizações.

Para prova das condições sociais, familiares e profissionais do arguido e condições económicas da sociedade arguida, foram consideradas as declarações prestadas em audiência de julgamento, as quais mereceram a credibilidade do tribunal.

Por fim, foi ainda valorado o teor do certificado de registo criminal dos arguidos quanto aos seus antecedentes criminais.


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III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Enquadramento Jurídico-Penal

Do crime de abuso de confiança contra a segurança social.

(…).


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Escolha e determinação da medida da pena

Da pena principal

Nos termos do disposto no n.º 1 do art. 40.º do Código Penal, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.

Na determinação da pena, o tribunal começa por determinar a moldura penal abstracta e, dentro dessa moldura, determina depois a medida concreta da pena que vai aplicar, para, de seguida, escolher a espécie da pena que efectivamente deve ser cumprida.

O crime de abuso de confiança contra a segurança social é punido em alternativa com pena de prisão de 1 (um) mês a 3 (três) anos ou com pena de multa de 10 (dez) a 360 (trezentos e sessenta) dias (cfr. art. 41.º n.º1 e 47.º n.1 do C.P., 105.º n.º1 e 107.º n.º1 do R.G.I.T.).

Para a arguida pessoa colectiva encontra-se prevista a pena de multa de 20 (vinte) a 720 (setecentos e vinte) dias (cfr. art. 12.º n.º1 e 3, 105.º n.º1 e 107.º n.º1 do RGIT).

No que respeita à escolha da espécie das penas alternativas abstractas previstas para o crime em questão (alternativa da pena de prisão ou da pena de multa) o tribunal apenas pode utilizar o critério da prevenção, como determina o artigo 70.º do C.P. Aí, determina-se claramente que a pena de prisão só deverá ser aplicada quando outra pena, não privativa de liberdade, não consiga realizar, de modo adequado e eficaz, as finalidades da punição. Com efeito, ao momento da escolha da pena alternativa são alheias considerações relativas à culpa. Esta (a culpa) apenas funciona como limite no momento da determinação da medida concreta da pena já escolhida. São finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa. A prevenção geral sempre sob a forma de conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, surge como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização; quer dizer, desde que impostas ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução de pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postos imediatamente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias (cfr. Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Parte Geral - II, p. 331).

No que concerne ao caso sub judice, são relevantes as exigências de prevenção geral, porquanto são prementes as necessidades de actuação ao nível do crime na área tributária, seja pelo prejuízo que causa à Segurança Social e, daí, a toda a comunidade, seja porque afecta a confiança que os cidadãos devem sentir na sociedade, entre si e com referência ao Estado. Ademais, considerando o concreto valor do prejuízo apurado nestes autos, as exigências de prevenção geral saem particularmente reforçadas, porquanto o prejuízo causado demanda já, por parte da comunidade, uma reacção criminal.

No que diz respeito às exigências de prevenção especial, verifica-se que o arguido se encontra social e familiarmente inserido. No entanto, certo é que sofreu já uma condenação pela prática do mesmo tipo legal de crime, pelo qual foi condenado em pena de prisão suspensa na sua execução, tendo praticado os factos de que ora cuidamos no decurso desse mesmo período da suspensão, o que revela já um reiterado desrespeito pela verdade fiscal. Opta-se, assim, pela aplicação de uma pena de prisão.

No que diz respeito à sociedade arguida não se coloca, obviamente, a questão de escolha da pena, uma vez que só a pena de multa é aplicável – cfr. art.12.º n.º 2 do R.G.I.T.

Escolhida a natureza da pena a aplicar, importa agora proceder à determinação da medida concreta da pena, para o que relevam a culpa e as exigências de prevenção (cfr. art. 71.º n.º 1 do C.P.). Nos termos do art. 71.º nº 1 e 2 do C.P., a determinação da medida da pena, dentro dos limites fixados na lei, é feita em função da culpa do agente (cfr. art. 40.º n.º2 do C.P.) e das exigências de prevenção, atendendo-se, em cada caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a seu favor ou contra ele, devendo atender-se, em tal juízo, aos elementos constantes do art. 71.º n.º 2 do C.P. É esta, em síntese, a posição de Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Parte Geral - II, p. 222, que articula as normas referidas nos termos expostos, os quais têm sido, no essencial, aceites e aplicados pelos tribunais – cfr., entre muitos outros, os acórdãos dos Supremo Tribunal de Justiça de 20/11/2008, P.º 08P1783, de 29/05/2008, P.º 08P1001, de 05/03/2008, P.º 08P437, e de 28/05/1997, P.º 97P157 (www.dgsi.pt).

Assim, haverá que ter em consideração as seguintes circunstâncias quanto ao arguido AA:

- atenuantes: a confissão integral e sem reservas por parte do arguido, demonstrativa de consciência critica para o seu comportamento; a circunstância de ter sido a precária situação económica da sociedade que determinou a conduta do arguido; a integração social e familiar de que beneficia;

- agravantes: a intensidade do dolo, uma vez que foram os factos praticados com dolo directo e persistente, quando visto o período em causa; a condenação já sofrida pelo arguido pela prática do mesmo tipo legal de crime, tendo praticado os factos em causa nos autos no decurso do período da suspensão da pena de prisão que ali lhe havia sido aplicada.

Assim, atentas as considerações já expendidas quanto às exigências de prevenção geral e especial que o caso em apreço demanda e tendo presente o limite máximo consentido pelo grau de culpa do arguido, o qual é significativo, afigura-se adequada a aplicação ao arguido AA da pena de 10 (dez) meses de prisão.

Relativamente à sociedade arguida, sendo a arguida uma pessoa colectiva, da conjugação dos art. 12.º n.º 2 e 3 e 105.º n.º1 do R.G.I.T., resulta aplicável uma moldura entre 20 (vinte) e 720 (setecentos e vinte) dias de multa. Assim, tendo em conta os montantes globais envolvidos, o benefício que ilicitamente a pessoa colectiva conseguiu com a conduta ilícita do seu gerente e o prejuízo causado ao Estado e ainda a condenação anteriormente sofrida pela sociedade pela prática do mesmo tipo legal de crime, julga-se adequada a aplicação à sociedade arguida de uma pena de 400 (quatrocentos) dias de multa.

O quantitativo diário segundo o art. 15.º n.º1 do R.G.I.T. oscilará, para as pessoas colectivas, entre 5,00€ e 5.000,00€. No que toca aos elementos para a determinação do quantitativo diário, apurou-se que a arguida sociedade atravessava à data dos factos fortes dificuldades financeiras, mas encontra-se a laborar, com activo próprio significativo e com alguma estabilidade de meios.    

Assim, julga-se adequado fixar o quantitativo diário no valor de 8,00€ (oito euros).


*

Da pena de substituição

Impõe-se, agora, determinar se é caso de optar por pena de substituição da pena de prisão aplicada ao arguido AA.

É tendo em vista a ideia de prevenção especial (finalidade de socialização), aliado à expectativa razoável de que a pena de substituição ainda pode ser eficaz relativamente ao comportamento futuro do arguido, que se justifica a sua escolha, uma vez que a mesma ainda se mostra suficiente não só para evitar que o arguido reincida (dissuadir o agente da prática de novos crimes), como também para satisfazer aquele limiar mínimo da prevenção geral da defesa do ordenamento jurídico.

Pressuposto básico da aplicação de uma pena de substituição é a existência de factos que permitam um juízo de prognose favorável em relação ao comportamento futuro do arguido, sendo necessário que o tribunal esteja convicto de que a censura expressa na condenação e a simples ameaça de execução da pena de prisão aplicada sejam suficientes para afastar o arguido de uma opção desvaliosa em termos criminais e para o futuro.

São unicamente critérios de prevenção, maxime de prevenção especial, que presidem à escolha entre a prisão e uma pena de substituição, não devendo aqui ser levadas em conta considerações relativas à culpa, cuja valoração teve já lugar no momento anterior da escolha e determinação da medida da pena principal.

Nos termos do disposto no art. 43.º n.º 1 do C.P., “a pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, excepto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes.”.

Por outro lado, dispõe o art. 58.º n.º1 do C.P., que “se ao agente dever ser aplicada pena de prisão não superior a dois anos, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir, nomeadamente em razão da idade do condenado, que se realizam, por este meio, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição”.

Desde logo, em face dos antecedentes criminais do arguido e das considerações acima tecidas quanto às exigências de prevenção geral, consideramos que a substituição da pena por multa ou por prestação de trabalho a favor da comunidade não se mostra adequada e proporcional às finalidades da punição.

Cumpre agora aferir se a pena concretamente aplicada pode ficar suspensa na sua execução. Dispõe o art. 50.º n.º 1 do C.P. que “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”.

Este preceito consagra um poder-dever, ou seja um poder vinculado do julgador, que terá que decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização daquelas finalidades, sempre que se verifiquem os necessários pressupostos. Para este efeito, é necessário que o julgador, reportando-se ao momento da decisão e não ao da prática do crime, possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a ameaça da pena serão paliativos suficientes para o afastar provavelmente da prática de novos crimes, mediante um processo de renovação de um projecto de vida compatível com o respeito, que é seu dever, pelos valores cuja ofensa integra crimes, e com a possibilidade, como é seu interesse, de uma realização pessoal e comunitária positiva.

Este juízo de prognose favorável ao comportamento futuro do arguido pode assentar numa expectativa razoável (imbuída de um risco prudente) de que a simples ameaça da pena de prisão será suficiente para realizar as finalidades da punição e consequentemente a ressocialização (em liberdade) do arguido, ou dito de outro modo, a suspensão da execução da pena “deverá ter na sua base uma prognose social favorável ao réu, a esperança de que o réu sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime” – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/05/2001, P.º 01P1092 (www.dgsi.pt).

No caso em apreço, ao arguido não foi aplicada pena concreta superior a 5 anos de prisão. Por outro lado, pese embora os seus antecedentes criminais, pela prática do mesmo crime, importa ter presente que tal condenação se reporta já a factos que remontam ao ano de 2008, beneficiando o arguido de relevante integração social e familiar.

Entendemos, assim, poder ainda formular um juízo de prognose favorável ao arguido, no sentido de que a simples censura dos factos e, por conseguinte, a vivência sob a ameaça de pena de prisão, são suficientes para assegurar a protecção dos bens jurídicos violados e a reintegração deste na sociedade, pelo que se determina a suspensão da pena aplicada.

Assim, o tribunal decide suspender na sua execução a pena de prisão aplicada.

Dispõe o art. 14.º n.º 1 do Regime Geral das Infracções Tributárias “A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa”.

Porém, impõe-se considerar o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2012, segundo o qual no processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido no artigo 105.º, n.º1 do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º n.º1 do C.P, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14.º n.º1 do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado tendo em conta a sua concreta situação económica presente e futura.

Ora, segundo se afirma no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20/04/2016, P.º 21/14.6IDAVR.P1 (www.dgsi.pt), “O acórdão de fixação de jurisprudência n.º 8/2012, do Supremo Tribunal de Justiça, não obriga, nem poderia obrigar, sob pena de violação do princípio da igualdade, a que não tendo o condenado condições para pagar a prestação tributária, mas reunindo os demais requisitos para a suspensão de execução da pena, a mesma não seja suspensa.”

Acrescenta-se ainda no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18/02/2016, P.º 949/14.3IDLSB.L1-9 (www.dgsi.pt), que “O que tal AUJ obriga é que se faça, em sede de decisão, um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia, isto é, o julgador tem de aquilatar se o condenado está em condições de proceder ao pagamento da prestação tributária, durante o período da suspensão de execução da pena, e, estando, condicionar tal suspensão a esse pagamento. O acórdão não obriga, nem poderia obrigar, sob pena de violação do princípio da igualdade, a que, não tendo o condenado condições para pagar a prestação tributária, mas reunindo os demais requisitos para a suspensão de execução da pena, a mesma não seja suspensa. Seria uma verdadeira “prisão por dívidas ao Estado”.

Por fim, de referir o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25/02/2019, P.º 64/15.2T9VNC.G1 (www.dgsi.pt), no qual se afirma que “Em vez de se estabelecer uma correspondência automática entre o montante da quantia em dívida e o montante da quantia a pagar como condição de suspensão da execução da pena de prisão, a interpretação conjugada do citado art. 14 com o disposto no art. 51º,nº2, do C.Penal, de acordo com o qual “os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir”, permite que o dever de pagamento como condição de suspensão da pena de prisão só seja imposto quando do juízo de prognose realizado resultar que existem condições para que essa obrigação possa ser cumprida. Tal dever de pagamento também não tem de ser na totalidade do devido, podendo ser objecto de graduação/redução.

Ora, a formulação do juízo de prognose acerca das possibilidades do recorrente proceder ao pagamento da condição, passa pela consideração do montante da dívida em causa (…) e pela ponderação dos seus rendimentos mensais e respectivos encargos”.

No caso em apreço, apurou-se que, em consequência da conduta dos arguidos, a sociedade arguida obteve um beneficio no valor global de 138.599,93€.

Nessa medida, consideramos que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido só poderia ficar condicionada ao pagamento desta quantia.

Porém, no caso em apreço, em face do apurado quanto às condições económicas do arguido, não se mostra viável condicionar a suspensão da execução da pena ao pagamento da aludida quantia, sendo manifesto que o arguido não dispõe de rendimentos que lhe permita o cumprimento de tal condição. Antes se afigura razoável que a suspensão fique condicionada ao pagamento do valor de 25.000,00€, no prazo máximo da suspensão (5 anos – cfr. art. 50.º n.º5 do C.P.), para o que terá o arguido de afectar uma quantia mensal de cerca de 400,00€ para perfazer o montante, o que se afigura justo, adequado e razoável.

Pelo exposto, determina-se a suspensão da execução da pena de prisão aplicada, por um período que se fixa em 5 (cinco) anos, subordinada à obrigação de o arguido pagar ao Instituto da Segurança Social, nesse mesmo prazo, a quantia de 25.000,00€ (vinte e cinco mil euros), comprovando documentalmente nos autos o pagamento anual, a contar do trânsito em julgado da sentença, da quantia de 5.000,00€ (cinco mil euros).


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IV. DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL FORMULADO PELO INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, I.P.

(…)”.


*

Análise do mérito do recurso

Questão única: de saber se a condição imposta para a suspensão de execução da pena de prisão é desproporcional e inadequada por não ter o arguido capacidade económica para proceder ao pagamento anual da quantia de 5.000,00€ e a redução do valor da condição de suspensão.

O recorrente alega que a condição imposta para a suspensão da execução da pena de prisão aplicada, de pagamento do montante de € 25.000,00 num prazo de 5 anos, com pagamentos anuais de € 5.000,00, é desproporcional e inadequada, por se encontrar  reformado e a quantia mensal de reforma que recebe, no valor de € 1.700,00, é o seu único meio de subsistência.

Em seu entender, a aplicação da referida condição de suspensão porá em causa a subsistência do arguido em face dos seus rendimentos e das despesas do agregado familiar e poderá estar apenas a diferir, no tempo, a prisão efetiva do arguido por 10 meses, por não lhe ser possível pagar tal quantia.

Em face disso, entende que a sentença violou o decidido no Ac. de Fixação de Jurisprudência do STJ nº 8/2012, o disposto no art. 51º nº 2 do Cód. Penal e os princípios constitucionais da proporcionalidade, adequação e razoabilidade.

Requer que a condição de suspensão seja reduzida para o valor de € 20.000,00, a concretizar em cinco anos, mediante o pagamento anual de € 4.000,00, por só assim se cumprirem os critérios de razoabilidade impostos pelo juízo de prognose que reclama o art. 51º nº 2 do Cód. Penal.

Apreciando.

O recorrente vem condenado pela autoria material de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social p. e p. pelos arts. 7º nº 1 e 105º nº 1 ex vi do art. 107º do RGIT, na pena de 10 (dez) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de cinco anos, subordinada à condição de pagar ao Instituto de Segurança Social I.P., a quantia de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), comprovando documentalmente nos autos o pagamento anual da quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros).

O recorrente não coloca em causa a matéria de facto provada, a sua qualificação jurídica ou a natureza e medida concreta da pena principal, nem a suspensão da execução da pena de prisão ou a sua duração.

O que o recorrente contesta é a fixação do montante concreto do condicionamento da suspensão da execução da pena, ao pagamento do montante de € 25.000,00, no prazo de 05 anos, a concretizar em parcelas anuais de € 5.000,00 cada uma, por entender que os seus rendimentos mensais, dos quais há a descontar as despesas familiares, não lhe permitirem cumprir tal condição.  

O art. 14º do RGIT estabelece no seu nº 1 que “A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa “.

Trata-se de lex specialis relativamente às normas dos arts. 51º a 54º do Cód. Penal, que prevê uma especial e única modalidade de suspensão da execução da pena de prisão para as infrações fiscais.

Na presente situação, em consequência da conduta dos arguidos, a sociedade comercial arguida integrou no seu património, o montante global de € 138.599,93 referente ao somatório das cotizações legais retidas mensalmente do valor das remunerações dos trabalhadores e do membro do órgão estatutário em vez de as entregar mensalmente à Segurança Social entre o 10º e 20º dia do mês seguinte àquele a que as cotizações respeitavam e, tal, valor, permanece por regularizar junto do Instituto da Segurança Social, I.P. (factos provados nºs 6 e 11).

Do elenco dos factos provados consta ainda o que se retirou das declarações prestadas em audiência de julgamento (que mereceram a credibilidade do Tribunal) sobre a situação socioeconómica do recorrente AA, do seguinte teor:

“13. O arguido está reformado, auferindo a quantia mensal de 1700 EUR a título de pensão de reforma; habita com a sua mulher, a qual está reformada e aufere pensão de reforma no valor de 1300 EUR; habitam em casa própria; tem 2 filhos maiores; como habitações literárias tem o 11.º ano de escolaridade “.

O art. 51º do Cód. Penal sob a epígrafe «Deveres», dispõe que:

“1 - A suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente:
a)
Pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea;
b)
Dar ao lesado satisfação moral adequada;

c) Entregar a instituições, públicas ou privadas, de solidariedade social ou ao Estado, uma contribuição monetária ou prestação de valor equivalente.    

2 - Os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir” – destacado e sublinhado da nossa autoria.

Na subordinação da suspensão da execução da pena ao cumprimento de deveres (por serem apenas estes que relevam para o caso destes autos) é fundamental que não sejam desrazoáveis (“não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir”) – arts. 51º nº 2 e 52º nº 4 do Cód. Penal.

Conforme ensina Conceição Cunha([1]), “Esta proibição é, na verdade, imposta constitucionalmente, quer tendo em conta o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito ao desenvolvimento da personalidade (arts. 1º e 26º), quer o princípio da proporcionalidade e mínima restrição de direitos (art. 18º nº 2) (…). São, assim, proibidos, (…) obrigações pecuniárias que pusessem em causa o mínimo necessário a uma subsistência digna”.

Todavia o disposto nas normas dos arts. 51º nº 2 e 52º nº 4 do Cód. Penal vigoram apenas para os delitos do direito penal clássico ou «mala in se», sendo o direito penal fiscal direito especial relativamente ao direito penal de justiça e, portanto, é ao que se prescreve na norma do nº 1 do art. 14º do RGIT que deverá atender-se, só sendo legítimo recorrer ao disposto nas normas do Código Penal naquilo que não vier especificamente regulado no RGIT (cfr. arts. 1º d) e 3º a) do RGIT), não sendo o caso da situação dos presentes autos.

O AUJ do STJ nº 8/2012 de 12 de setembro de 2012 publicado no D.R. 1ª Série, nº 206, de 24/10/2012 veio dar um contributo para a interpretação do disposto no art. 14º do RGIT nas situações em que o tribunal, em face da opção entre a alternativa punitiva da pena de multa ou da pena de prisão, se decidiu pela aplicação da pena de prisão e, restando-lhe ainda decidir sobre a sua modalidade, equacionar a aplicação da pena substitutiva da suspensão da execução da pena de prisão, para o que deverá dispor das informações sobre as condições pessoais, económicas e financeiras do condenado (mas não com o objetivo de apurar se ele tem, ou não, capacidade económica para pagar as quantias que ficaram por entregar ao Estado, seu titular, e legais acréscimos), fixando a seguinte jurisprudência:

No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105º nº 1 do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50º nº 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14º nº 1 do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia” – destacado e sublinhado da nossa autoria.

E ao contrário do alegado pelo recorrente (e do entendimento seguido na sentença recorrida), o AUJ do STJ nº 8/2012 de 12 de setembro de 2012, ao estabelecer a necessidade do «juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura» não se está a referir à capacidade económica de o condenado ter ou não de pagar ao Estado a prestação tributária em dívida e acréscimos legais, já que por força do disposto no nº 1 do art. 14º do RGIT essa suspensão da execução da pena é sempre/obrigatoriamente condicionada ao pagamento da totalidade da quantia em dívida e legais acréscimos à margem da condição económica pessoal do arguido/responsável tributário, sem possibilidade de qualquer graduação ou de uma qualquer redução, mas antes a querer significar que, como se diz no texto do AUJ nº 8/2012, “a margem de liberdade do julgador  situa-se no justo ponto e momento em que pode optar pela substituição, mas para o fazer tem de estar na posse do pleno das informações possíveis, de modo a bem fundamentar a opção. Feita a escolha, a adoção da medida de substituição, cessa a liberdade de punição, porque imposta é a subordinação à condição; o juiz fica subordinado, amarrado, ao incontornável passo seguinte, que é impor a subordinação ao pagamento. Mas porque assim é, será nesse primeiro momento, em que é possível o exercício de liberdade, que poderá avaliar do sucesso da medida e mesmo cogitar sobre o regresso ao estádio anterior e pensar sobre a escolha de pena que temporariamente, como mero exercício de raciocínio, não foi tida então em consideração e tomada como boa solução. Por último, o julgador sempre terá uma palavra a dizer sobre o prazo de pagamento, para mais no âmbito de uma norma especial”.

Sobre a «Condição Pecuniária» da «Suspensão da execução da pena de Prisão», escreveu-se no § 21. do Ac. desta Relação do Porto de 28/04/2021, proc. nº 406/18.9IDPRT.P1, vindo do Juiz 9 do Juízo Central Criminal de Vila do Conde, relatado por Castela Rio, o seguinte (suporte digital gentilmente disponibilizado pelo ali Relator, aqui II Adjunto. No caso sub judice dispensa-se, como usualmente, a reprodução das notas de rodapé originais 1 a 24):

Segundo o art 14-1 do RGIT – vigente desde 05-7-2011 ut art 14-II do articulado da Lei 15/ 2001 de 5/6 - «A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa» que é 1 200 dias ut art 104-1 do RGIT «… a uma quantia entre € 1 e € 500, tratando-se de pessoas singulares, … que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos» ut art 15-1-I-III do RGIT.
Ora [1], enquanto em Direito Penal comum, o estabelecimento de condições / deveres / injunções / obrigações / proibições / regras de conduta é um «poder-dever» do Tribunal para adjuvar à realização pela pena «Suspensão da Execução da Pena de Prisão» de substituição - da pena principal de prisão contínua e ininterrupta em Estabelecimento Prisional - das sobreditas finalidades da punição, como se colhe do art 50-2 conforme o qual «O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova», bem assim do art 52-1 conforme o qual «O tribunal pode impor ao condenado o cumprimento, pelo tempo de duração da suspensão, de regras de conduta de conteúdo positivo, susceptíveis de fiscalização e destinadas a promover a sua reintegração na sociedade»,
Pelo que o Tribunal objectivará condições / deveres / injunções / obrigações / proibições / regras de conduta no respeito dos princípios da necessidade e da adequação e da proporcionalidade que têm sido relevados pelo Tribunal Constitucional ao longo da sua Jurisprudência [2] com expressão no art 51-2 quanto a «Deveres» conforme o qual «Os deveres impostos não podem em caso algum representar para o conde nado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir» aplicável a «Regras de conduta» ex vi art 52-4 de modo que «Os deveres impostos [até] podem ser modificados até ao termo do período de suspensão sempre que ocorrerem circunstâncias relevantes supervenientes ou de que o tribunal só posteriormente tiver tido conhecimento» ut art 51-3, todos estes do CP advindo em 01-10-1995,
Diversamente em Direito Penal Tributário como «direito especial» que é ut art 1-1 quanto a «Âmbito de aplicação» e art 3 quanto a «Direito subsidiário» e mormente o art 10 epigrafado «Especialidade das normas tributárias e concurso de infracções» conforme o qual «Aos responsáveis pelas infracções previstas nesta lei são somente aplicáveis as sanções cominadas nas respectivas normas, desde que não tenham sido efectivamente cometidas infracções de outra natureza» do RGIT que consagrou «… expressamente o princípio da especialidade das normas sobre infracções tributárias» [3] de modo que o Legislador de 2001 recusou a possibilidade de ser «singela» - isto é, sem condições / deveres / injunções / obrigações / proibições / regras de conduta - a condenação na «Suspensão da Execução da Pena de Prisão» como era admitida pelo - e proliferava desde o - Código Penal advindo em 01.01.1983, ao prescrever no art 14-1-I do RGIT que a pena de substituição «Suspensão da Execução da Pena de Prisão» fosse «… sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, dos montantes dos benefícios indevidamente obtidos …» dita «condição pecuniária» que não é desrazoável nem despropositada.
Numa compreensão sistémica porque «As funções do Estado directamente interventoras através de prestações sociais pressupõem a existência de recursos financeiros. Estes recursos precisam de protecção e a tal fim servem, em grande parte, os crimes tributários. Por isso que o bem jurídico tutelado pelos crimes tributários é frequentemente identificado com o património do Estado na sua componente tributária. | Cremos, porém, que os bens jurídico-penais tutelados pelos crimes tributários, num sistema abrangente como é o português, que inclui os crimes de natureza fiscal, aduaneira e contra a Segurança Social, não se reconduz ao património tributário porque, como referido já, a função tributária não se limita a arrecadar impostos para satisfação das necessidades financeiras do Estado (art. 103° da CRP), mas pode prossegue outras finalidades, nomeadamente a de desincentivar o consumo de determinados produtos (art. 104°, n° 4, da CRP) ou outros interesses ditados pela política económica [art. 81, al. b), da CRP]. Os crimes tributários visam tutelar a realização dos interesses prosseguidos pelo sistema tributário e por isso que consideremos que a par do património tributário, que constitui a componente mais visível do bem jurídico tutelado como o bem imediatamente tutelado pela generalidade dos crimes tributários, pode suceder, e sucede nalgumas incriminações, que a tutela se dirija a funções alheias à tributação» [4].
E não é caso para contra-argumentar que «…as condutas incriminadas pelos crimes tributários são em si inócuas para lesar ou pôr em perigo o bem jurídico tutelado e consequentemente não seriam por si [sós, ou seja consideradas uma a uma,] merecedoras de pena pois que só em acumulação com outras condutas constituiriam uma lesão relevante do bem jurídico» porquanto «Não é necessário recorrer ao pensamento acumulativo para justificar as incriminações porque cada comportamento ofende por si só o bem jurídico tutelado, nomeadamente quando se trata de efectiva lesão do património tributário [lesando-o ou pondo-o em perigo]. Acresce que os deveres jurídicos individuais dos membros de uma sociedade organizada não se limitam ao mero respeito do neminem laede, mas incluem também a obrigação de colaborar para garantir que cada um possa receber o que lhe é devido (suum cuique tribuere). Enquanto se trate da manutenção e garantia dos bens jurídicos colectivos necessários à existência e funcionalidade da sociedade existe um dever de cooperação. | Ainda que a conduta a prevenir seja em si relativa mente inócua, a incriminação pode justificar-se quando exista uma dimensão de perigo para os bens em causa, constituída pela possibilidade de que a conduta leve outros a comportar-se do mesmo modo» [5].
Daí a norma prescritiva do art 14-1 do RGIT conforme o qual «A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa» que é complementada pelo art 14-2 do RGIT conforme o qual «Na falta de pagamento das quantias referidas no número nanterior, o tribunal pode: a) exigir garantias do pagamento; b) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível; c) Revogar a suspensão da pena de prisão» e que são normas integrantes do Direito Penal Tributário, especial relativamente ao Direito Penal Comum ou Geral ou de Justiça in arts 50 segs do CP, atento «O carácter especial do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) [que] encontra assento no seu art. 10º [6] e deve ser interpretado em conjugação com os seus artigos 2º [7] e 3º [8] e com o artigo 8º do Código Penal [9]» [10].
Ora, «Para bem se compreender o regime da suspensão constante do RGIT é conveniente conhecer os seus antecedentes no âmbito tributário.
O Decreto-Lei n° 619/76, de 27 de Julho, dispunha no seu artigo 6°: «Não há suspensão condicional da pena aplicada a qualquer infracção tributária». Depois, o RJIFNA, na sua redação originária, dispunha no n° 5 do art. 11°: «Em caso de suspensão da execução da pena, entre os deveres a impor ao condenado pode figurar o de pagar previamente a dívida de imposto e acrescimos legais, dentro de certo prazo». O Decreto-Lei 394/93, de 24 de Novembro, alterou o RJIFNA e passou a dispor sobre a matéria: «art. 11°, n°6: É admissível nos termos do Código Penal a suspensão da pena, com as particularidades constantes do n° 7»; art. 11°, n° 7: «A suspensão é sempre condicionada ao pagamento ao Estado, em prazo a fixar pelo juiz nos termos do n° 8, do imposto e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa, sendo aplicável, em caso de falta de cumprimento do prazo, apenas o disposto nas alíneas b), c) e d) do artigo 50º do Código Penal» [11]
O n° 2 do art. 14° do RGIT dispõe agora simplesmente: «2. Na falta do pagamento das quantias referidas no número anterior, o tribunal pode: a) Exigir garantias de cumprimento; b) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível; c) Revogar a suspensão da pena de prisão».
A imposição de pagamento da prestação tributária em dívida não é exclusiva dos crimes tributários. Também o art. 51° do Código Penal, na redacção vigente à data da publicação do RGIT [12], dispunha que a suspensão da execução da pena de prisão podia ser subordinada ao pagamento dentro de certo prazo da indemnização devida ao lesado. A especialidade do art. 14° do RGIT consiste em que a imposição da condição é obrigatória.
Não faz sentido a obrigatoriedade da imposição deste dever. Pode suceder que logo no momento da condenação seja desde logo previsível que o condenado não terá condições económico-financeiras para proceder ao pagamento e por isso que a imposição desse dever constituirá apenas o adiamento da decisão sobre o cumprimento da pena de prisão. Ora, a prisão só deve ser imposta se necessária e o critério da necessidade não pode ser apenas a impossibilidade de pagamento da prestação tributária em dívida. A prestação tributária mantém-se e por isso que a Administração poderá sempre executá-la, sendo possível. Se o incumprimento fica a dever-se a impossibilidade e esta situação não foi causada culposamente não há justificação para a prisão» [13].
Pois bem, não obstante a supra citada perspectiva de lege ferenda daquele Autor do Projecto do RGIT de 2001, certo é que do regime especial de Direito Penal Tributário ainda expressamente positivado no supra citado art 14-1 do RGIT impõe-se ao Tribunal decidir o condicionamento obrigatório do Condena(n)do «… ao pagamento da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos…», que necessariamente pressupõe a prévia conclusão pelo Tribunal da verificação do pressuposto formal e requisitos materiais in art 50-1 do CP conforme o qual «O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”, isto é, após formulação dum juízo de prognose favorável que se impõe fazer no caso da punição do crime – tributário comum, aduaneiro, fiscal ou contra a Segurança social - com pena principal de prisão sendo que no caso de penas principais de prisão ou multa em alternativa na norma cominadora correlativa da norma violada atende-se ao AUJ 8/2012 conforme o qual «No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia».
Sobre a questão de Direito Penal Comum ou de Justiça da (des)conformidade à CRP da possibilidade do Tribunal Penal condicionar ou subordinar a «Suspensão da Execução da Pena de Prisão» ao cumprimento de «dever de indemnizar» total ou parcialmente Vítima / Ofendido / Queixoso / Assistente / Lesado / Autor Civil ou de «dever de prestar» a terceiro como uma Instituição pública ou privada de Solidariedade Social ut art 49-1-a-c do CP de 01-01-1983 e art 51-1-a-c do CP de 01-10-1995, o Tribunal Constitucional pronunciou-se no sentido da não inconstitucionalidade da imposição de um dever daqueles por não violar o art 27-1 da CRP [14].
Sobre a questão de Direito Penal Tributário da (des)conformidade à CRP daquele regime de condicionamento obrigatório da suspensão da execução da pena de prisão «ao pagamento da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos», designadamente aos princípios da igualdade, adequação, proporcionalidade e comummente dita proibição da «prisão por dívidas» decorrentes dos arts 13-1, 18-2 e 27 da CRP e apesar das reservas de constitucionalidade suscitadas pelo art 14-1 do RGIT verbi gratiae os votos de vencido de Maria Fernanda Palma nos ATC 376/2003 e 29/2007, o Tribunal Constitucional pronunciou-se no sentido de não serem inconstitucionais «… as normas contidas no artº 11º nº 7 do RJIFNA, aprovado pelo Decreto Lei nº 20-A/90 (na redacção do Decreto Lei nº 394/93 de 24 de Novembro) e no artº 14º do RGIT, aprovado pelo Decreto-Lei nº 394/93, de 24 de Novembro) e no artº 14º do RGIT aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de Junho» por não colidirem com os princípios constitucionais da culpa, da adequação e da proporcionalidade [15] porque:
Desde logo, «… as razões que, relativamente à generalidade dos crimes, estão na base do regime constante do artº 51º, nº 2 do CP, não têm necessariamente de assumir preponderância nos crimes tributários …» já que «… no caso destes crimes, a eficácia do sistema fiscal pode perfeitamente justificar regime diverso, que exclua a relevância das condições pessoais do condenado no momento da imposição da obrigação de pagamento e atenda unicamente ao montante da quantia em dívida» [ATC 256/2003], quer porque a possibilidade de cumprimento da obrigação de pagamento da quantia em dívida não é em si uma condição subjacente à suspensão da pena, para formulação pelo Tribunal do juízo sobre a verificação dos pressupostos da suspensão, quer porque «… mesmo parecendo impossível o cumprimento no momento da imposição da obrigação que condiciona a suspensão da execução da pena, pode suceder que, mais, tarde, se altere a fortuna do condenado e, como tal, seja possível ao Estado arrecadar a totalidade da quantia em dívida» [ATC 256/2003]; e,
Quiçá decisivamente, o não cumprimento da obrigação não determina a revogação automática da suspensão da execução da pena, pois a revogação depende sempre da demonstração do facto de ser culposa a não satisfação da «condição pecuniária» ex vi art 56-1-a do CP conforme o qual «A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado: a) Infligir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos …». No dizer do ATC 256/2003, «Como claramente decorre do regime do C.Penal para o qual remetia o artº 11 nº 7 do RGIT, a revogação é sempre uma possibilidade; além disso, a revogação não dispensa a culpa do condenado » !
Mais, «I - O sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza, e a tributação do património pessoal ou real deve concorrer para a igualdade entre os cidadãos (arts. 103.º, n.º 1, e 104.º, n.º 3, da CRP), pelo que é da maior evidência, quer no plano teórico quer no plano prático, que o lançamento dos impostos, mostrando-se a coberto da tutela da lei ordinária, sustentada pela lei fundamental, reclama para sua cobrança um regime punitivo deferido ao Estado, sem o qual aquela superior e pública finalidade se mostraria seriamente comprometida, integrando-se, como se integra, o delito de fuga aos impostos naquilo que se apelida de “delinquência patrimonial de astúcia”. II - Por isso o jus puniendi de que o Estado se mostra detentor na luta contra os devedores de impostos e contribuições à Segurança Social, quando aos credores particulares do Estado lhes é denegada igual tutela, enquanto figura incumpridora e em mora nas suas obrigações, não reveste qualquer tratamento chocante, forma diferenciada ou desproporcionada, em colisão com os princípios com dignidade constitucional sedeados ao nível da igualdade dos cidadãos e da menor compressão dos direitos fundamentais - arts. 13.°, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da CRP. III - Trata-se de assegurar tratamento diferenciado e desigual, justificado e de todos aceite, numa área e a uma entidade vocacionada à realização de fins públicos, de prossecução de incontornáveis interesses de índole financeira, nacionais e comunitários, de subsistência colectiva, de justa repartição dos rendimentos, objectivos ocupantes na pirâmide de interesses de posição de topo, superiorizando-se aos privados[16]
Ademais, «VII - Não contende com os princípios da necessidade das sanções penais, da igualdade e da proporcionalidade, não sendo inconstitucional, o art. 14º do RGIT, que obriga a que a suspensão da execução da pena fique sujeita à condição do pagamento da indemnização, pois, como se afirmou no ac. de 21-12-2006 – Proc. n.º 2946/06 - 5.ª –, “a exigência do pagamento da prestação tributária como condição da suspensão da execução da pena de prisão, à margem da avaliação do quadro económico do responsável tributário, nada tem de desmedida, mostrando-se inteiramente justificada pelo interesse preponderantemente público que acautela e pela necessidade de eficácia do sistema penal tributário”. VIII - A alteração de paradigma quanto ao tempo de suspensão da execução da pena, operada pela reforma do CP levada a efeito pela Lei 59/2007, de 04-09, ao impor que o tempo de suspensão seja igual ao da medida concreta da pena de prisão, desde que superior a um ano, coloca a questão da sua aplicabilidade às infracções fiscais, sabido que, nos termos do art. 3.º do RGIT, as normas do CP são subsidiariamente aplicáveis. IX- Procurando a lei com os ilícitos fiscais proteger as receitas tributárias enquanto componente activa do património tributário do Estado, compreende-se que o regime da suspensão da execução da pena nestes casos se afaste do novo regime geral do CP, continuando o juiz, independentemente da duração da pena, a ter a faculdade de fixar, para a suspensão, um prazo que na realidade permita ao condenado proceder ao pagamento das prestações tributárias em falta. X - De todo o modo, configura-se uma questão de aplicação da lei penal no tempo. Assim, se, em abstracto, a nova norma do art. 50.º do CP é, em princípio, mais favorável ao agente, por ter retirado ao julgador a possibilidade de alargar o período de suspensão para limites superiores ao da pena aplicada, de harmonia com o seu juízo de prognose, tal regime, mostra-se, em concreto, desfavorável ao recorrente, porque, ao restringir o período de duração da suspensão, vai obrigá-lo a um esforço financeiro bem maior para conseguir pagar, num período mais curto, o elevado montante da prestação tributária em dívida e legais acréscimos, para poder beneficiar da suspensão da execução da pena que foi fixada.» [17]
Ainda, «Tem sido frequentemente invocada nos tribunais a inconstitucionalidade da norma do art. 14° do RGIT por violadora do princípio da igualdade constante do art. 13° da CRP, na medida em que importa a imposição de uma obrigação que pode ser impeditiva da efectividade da suspensão da execução da pena de prisão, apenas em razão da insuficiente situação económica do condenado para satisfazer essa obrigação [18]. No entendimento atrás defendido (supra III) de que só o não pagamento culposo da condição de suspensão pode determinar a revogação da suspensão da execução da pena de prisão, não há qualquer inconstitucionalidade na norma. O princípio da igualdade não impede que a lei possa estabelecer distinções de tratamento, desde que material, objectiva e razoavelmente fundadas. Antes implica que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diversamente o que for diferente. O que o princípio da igualdade impõe à lei ordinária é a proibição do arbítrio, as descriminações ou diferenciações fundadas em categorias ou situações meramente subjectivas, materialmente infundadas, isto é, sem um fundamento sério, sem um sentido legítimo, sem uma fundamentação razoável, segundo os critérios de valor objectivo constitucionalmente relevantes (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, pp. 389 a 392).» [19]
Assim, a realização de condenação na «condição pecuniária» expressa o cumprimento do subsistente imperativo do art 14-1-I do RGIT enquanto lex specialis derrogat lex generalis, havendo que coarctar sobremaneira uma violação a qualquer momento do princípio da igualdade na determinação qualitativa e quantitativa da pena de substituição por uma (in)admissível realização de condenações a la carte inclusive no mesmo processo em função das pessoas co-Arguidas de um mesmo crime doloso apesar da conduta criminosa ser sempre estruturalmente idêntica independentemente da pessoa dos agentes em cada caso e apesar da pecuniae ter ficado na posse dele/a/s ao não ter sido tempestivamente entregue à ATA do Estado!
Destarte, ressuma da fundamentação do AUJ 8/2012 supra citado que «Feita a escolha (entre a pena de prisão efetiva ou a pena de substituição), a adopção da medida de substituição, cessa a liberdade de punição, porque imposta é a subordinação à condição; o juiz fica subordinado, amarrado, ao incontornável passo seguinte, que é impor a subordinação ao pagamento …» que tanto não viola os supra aludidos princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade das penas ínsitos ao art 18-2 da CRP [20] que a «condição pecuniária» até tem sido imposta a desempregado de longa duração [21] e sem se vislumbrar que o cumprimento daquela ponha em causa o mínimo necessário à subsistência do condena(n)do [22] in casu JOSÉ ser humano adulto cuja insolvência pessoal não obsta ao predicado da capacidade de ganho.
Tem-se sempre presente que a «condição pecuniária» da «pena de substituição» em sentido próprio nomen «Suspensão da Execução da Pena de Prisão» dos arts 50 sgs do CP de 01-10-1995 e do 14 do RGIT de 05-07-2001 se trata de «… dever de indemnizar, [que] é de sua função adjuvante da realização da finalidade da punição …»[23] dita prevenção especial positiva por que «O pagamento da indemnização como condicionante da suspensão da execução da pena, na medida em que representa um esforço ou implica até sacrifício da parte do arguido no sentido de reparar as consequências danosas da sua conduta, funciona não só como reforço do conteúdo reeducativo e pedagógico da "pena de substituição", mas como elemento pacificador, neutralizando o efeito negativo do crime e apresentando-se como meio idóneo de dar satisfação suficiente às finalidade da punição, respondendo, nomeadamente, à necessidade de tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas da comunidade.» [24].
(…).
§ 22. PRAZO DE SUSPENSÃO DO ART 50-5 DO CP VERSUS PRAZO DE PAGAR DO ART 14-1 DO RGIT
Tendo presente o princípio geral de aplicação da Lei Penal no tempo de que «As penas são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem» ut art 2-1 do CP desde 01-10-1983, dir-se-á que:
Com a vigência do DL 400/82 de 23/9 emitido ao abrigo da Lei de Autorização Legislativa – infra LAL - 24/82 de 23/8, o art 48-4 do CP desde 01-01-1983 – ex vi art 2 do articulado daquele DL – passou a estatuir que «O período de suspensão será fixado entre 1 e 5 anos, a contar do dia em que a decisão transitar em julgado
Depois, com a vigência do DL 48/95 de 15/3 emitido ao abrigo da LAL 35/94 de 15/9, o art 50-5 do CP desde 01-10-1995 - ex vi art 13 do articulado daquele DL - passou a estipular que «O período de suspensão é fixado entre 1 e 5 anos a contar do trânsito em julgado da decisão».
Na vigência de tal norma cominadora entrou em vigor o art 14-1 do RGIT de 05-7-2001 estatuindo - apenas quanto à obrigatoriedade do condicionamento, ao quantum da condição pecuniária e ao tempus do seu pagamento – que «A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos …».
Seguidamente, com a vigência da Lei 59/2007 de 4/9, o art 50-5 do CP desde 15-09-2007 - ex vi art 13 do articulado daquela Lei - passou a prescrever que «O período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão» que era a Lei Penal vigente ao tempo da prática entre 15-02-2016 e 15-02-2017 da dolosa fraude fiscal qualificada sub judice.
Posterior e presentemente, com a vigência da Lei 94/2017 de 23/8, o art 50-5 do CP de 22-11-2017 - ex vi art 14 do articulado daquela Lei - passou a estatuir apenas que «O período de suspensão é fixado entre um e cinco anos».
A novel eliminação do segmento «a contar do trânsito em julgado da decisão» é penal processual penalmente irrelevante porque o «Recurso Ordinário» da «Decisão Final» - seja «Sentença» ut art 97-1-a ou «Acórdão» ut art 97-2 do CPP - pode ser interposto informática ou telematicamente [26] até às 23:59:59 do último dia do prazo de 30 dias do art 411-1 do CPP sem prejuízo da prática do acto processual nos 1º, 2º ou 3º dias úteis com multa ut art 107-A-a-b-c-do CPP.
Assim, só às 00:00 do dia seguinte a «Decisão Final» constitui «título executivo» a cumprir ex vi art 467-1 do CPP conforme o qual «As decisões penais condenatórias transitadas em julgado têm força executiva em todo o território português e ainda em território estrangeiro, conforme os tratados, as convenções e regras de direito internacional».
Destarte, pela prática de crime cometido entre 01-01-1983 e 14-9-2007 inclusive o Tribunal Penal podia discricionariamente quantificar tempus do período de «Suspensão da Execução da Pena de Prisão» idêntico, maior ou menor que o tempus da pena principal de prisão fixada.
Diversamente, pela prática de crime cometido entre 15-9-2007 e 21-11-2017 inclusive o Tribunal Penal não podia tergiversar por ter de aplicar tempus do período de «Suspensão da Execução da Pena de Prisão» idêntico ao tempus da pena principal de prisão fixada.
Assim se coarctou a praxis de anos de condenação de agentes de crimes, em tempus do período de «Suspensão da Execução da Pena de Prisão» muito inferior – in extremis o máximo de uma pena ou pena única de 5 anos de prisão suspensa sua execução pelo mínimo legal de 1 ano - ou muito superior – in extremis uma pena ou pena única por ex de 1 ano de prisão suspensa a execução pelo limite máximo 5 anos - ao tempus da pena principal de prisão fixada.
Tal «interregno» cessou com o regresso ao estalão anteriormente vigente durante 24 anos 8 meses 14 dias de modo que o período de «Suspensão da Execução da Pena de Prisão» voltou a poder ser idêntico, maior ou menor que o tempus da pena principal de prisão fixada.
Porém, da inexistência no CP de uma prescrição positiva ou negativa quanto a correlação entre o tempus do período de «Suspensão da Execução da Pena de Prisão» e o tempus da pena principal de prisão fixada não permite fixação arbitrária mas apenas discricionária daquele.
O tempus do período de «Suspensão da Execução da Pena de Prisão» formalmente pode ser mas materialmente não deve ser inferior ao tempus da pena principal de prisão fixada sob pena do absurdo jurídico do tempus de ameaça de cumprimento efectivo da prisão contínua e ininterrupta em Estabelecimento Prisional - qual «Espada de Dâmocles» sobre o Condena(n)do - a final não cumprir a função «prevenção especial positiva» de reincidência do crime.
O tempus do período de «Suspensão da Execução da Pena de Prisão» formalmente pode ser mas materialmente não deve ser muito superior ao tempus da pena principal de prisão fixada sob pena do absurdo jurídico do tempus de ameaça de cumprimento efectivo da prisão contínua e ininterrupta em Estabelecimento Prisional constituir «excesso punitivo» já que um tempus maior potencia o risco in extremis de revogação da «Suspensão da Execução da Pena de Prisão» com o cumprimento da prisão fixada ut art 56-1-a-b-2 do CP de 01-10-1995.
Destarte, nos termos e para os efeitos do art 2-4-I do CP de 01-10-1995 conforme o qual «Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente», a nova Lei Penal cominadora - do tempus de «Suspensão da Execução da Pena de Prisão» - é concreta - já que desde logo abstractamente - mais favorável ao permitir condenação em tempus de «Suspensão da Execução da Pena de Prisão» algo superior ao tempus fixado de prisão contínua e ininterrupta em Estabelecimento Prisional mormente no caso de imposição judicial de «dever de indemnizar» e ou de «dever de «prestar».
Assim a praxis corrente da condenação em tempus do período de «Suspensão da Execução da Pena de Prisão» vg cerca de 3 ou 6 ou 9 ou 12 meses além do tempus da pena principal de prisão fixada – tempus aquele maior quanto maior for o tempus da prisão fixada - para se lograr uma realização calibrada de todas as «finalidades da punição» supra elencadas.
A acuidade de adequação, necessidade e proporcionalidade daqueles tempus é mais incisiva quando o Tribunal Penal mais tem de fixar o tempus do cumprimento dos possíveis «dever de indemnizar» ut art 51-1-a do CP e ou de «dever de prestar» ut art 51-1-c do CP, de 01-10-1995, ou do obrigatório «dever de indemnizar» ut art 14-1 do RGIT de 05-7-2001.
Assim se viabiliza condenação em tempus de satisfação de «dever de indemnizar» ou «dever de prestar» alargado até ao tempus do período de «Suspensão da Execução da Pena de Prisão» mas não mais do que este visto que «Não é sustentável o entendimento de que, no âmbito dos crimes previstos no RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão corresponda ao tempo da prisão cominada e, simultaneamente, se estenda para além deste limite temporal, até aos cinco anos, a condição de pagamento da prestação tributária e acréscimos legais» [27].
«Com efeito, o período de suspensão não pode situar-se aquém do prazo fixado para o cumprimento da condição a que se encontra subordinada, pois se assim não for, poderá conduzir a que a pena seja declarada extinta sem que se mostre cumprida a condição, cujo prazo ainda não se haja esgotado» [28], o que constitui ilegalidade objectiva ex vi a norma prescritiva do art 57-1 do CP desde 01-10-1995 conforme o qual «A pena é declarada extinta se, decorrido o período da sua suspensão, não houver motivos que possam conduzir à sua revogação».
Com o desiderato da realização das «finalidades da punição» segundo o «princípio de concordância prática ou de harmonização» [29] do «direito à vida em liberdade» com tutela constitucional ut arts 24-1 e 27-1 da CRP- que uma reclusão sempre temporalmente limitada sacrifica em parte - e do «direito ao património» com tutela constitucional ut art 62-1 da CRP – que é parcialmente sacrificado com o cumprimento de «dever de indemnizar» no caso do art 51-1-a e ou de «dever de prestar» no caso do art 51-1-c todos do CP de 01-10-1995,
(…)”.
Voltando ao caso dos autos, é inegável que a sentença recorrida violou o determinado no AUJ nº 8/2012 e o disposto no art. 14º nº 1 do RGIT ao afastar o condicionamento da suspensão da execução da pena de prisão pela qual optou ao abrigo do art. 70º do Cód. Penal, à obrigação de o recorrente pagar o montante da dívida de € 138. 599,93 (cento e trinta e oito mil, quinhentos e noventa e nove euros e noventa e três cêntimos) e legais acréscimos ao Instituto de Segurança Social, I.P., reduzindo o valor a pagar pelo arguido para o montante de € 25.000,00, para o que levou em consideração a situação pessoal do arguido e os seus rendimentos mensais.

Todavia, não tendo sido interposto recurso pelo MºPº quanto a esta parte, também este Tribunal de recurso não poderá repor a legalidade sob pena de violação da proibição da reformatio in pejus consagrada no art. 409º nº 1 do CPP.

De qualquer forma, sempre se dirá que perante o que ficou consignado na sentença não pode dizer-se que a Sra. Juiz a quo não teve em conta as condições socioeconómicas do recorrente ao estabelecer um prazo de 5 anos (idêntico ao período de duração da suspensão da execução da pena) para permitir-lhe proceder ao pagamento do montante fixado de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros) por conta das quotizações em dívida à Segurança Social I.P. (que na realidade ascende a € 138.599,33), montante que representa, como bem refere o MºPº na resposta, cerca de 1/5 da totalidade do seu valor, a concretizar em tranches anuais de € 5.000,00 cada uma, equivalendo, feitas as contas, à retirada da quantia mensal de € 416,00 do valor mensal da pensão de reforma auferida pelo arguido, no montante de € 1.700,00.

No plano dos rendimentos auferidos pelo recorrente a título pessoal, sobressai um rendimento anual de € 23.800,00 (€ 1.700,00 x 14 meses).

Ao recorrente restará ainda a quantia de € 1.284,00 para se sustentar e contribuir para as despesas do seu agregado familiar (composto por 2 filhos maiores de idade e pela esposa do arguido), para as quais também contribui a pensão de reforma auferida pela esposa, no montante de € 1.300,00 mensais.  Além disso, como habita em casa própria, não haverá que deduzir daquele remanescente de € 1.284,00, qualquer outra quantia com a habitação/alojamento do arguido e seu agregado familiar.

É certo, que na presente situação estamos perante um condenado com 69 anos de idade (por reporte à data da condenação), que se encontra reformado e que, portanto, não poderá almejar aumentar os rendimentos provenientes do seu trabalho.

Porém, por habitar em casa própria, as despesas do recorrente confinam-se às decorrentes do dia-a-dia (alimentação, vestuário, eletricidade, água, gás, medicação, etc.).

Conforme realça o MºPº na resposta e por reporte à quantia de € 25.000,00 fixada na sentença (e já não à que resultaria da devida aplicação do disposto no nº 1 do art. 14º do RGIT), “em termos comparativos, e sempre com as devidas cautelas tendo em conta os domínios em causa (mas pertinente no que toca à salvaguarda do valor mínimo existencial), para uma pessoa singular que é declarada insolvente (e, portanto, não cometeu nenhum crime) os Tribunais aquando a exoneração do passivo restante acautelam ao insolvente um salário mínimo nacional por entenderem que é o mínimo necessário para assegurar a sua sobrevivência.

Ora, no caso em apreço, considerando apenas o rendimento do arguido, este fica na sua esfera de disponibilidade com um rendimento líquido mensal superior a dois salários mínimos nacionais (23.800,00€ - 5.000,00€ (valor anual fixado na sentença) = 18.800,00€ : 12 meses = 1.566,66€).

Porventura, terá o arguido que alterar alguns aspetos no seu quotidiano que implicarão alguns sacrifícios, mas isso não se afigura irrazoável ou desproporcional. De facto, foi o arguido quem se colocou nessa situação ao ter cometido um crime que teria sempre um reflexo negativo na sua vida, em caso de condenação, como foi o caso.

No Ac. da R.G. de 17/12/2013([2]) citado pelo MºPº, “I- Sendo o valor do salário mínimo nacional aquele que o próprio legislador considera como sendo o necessário para assegurar a subsistência do trabalhador com o mínimo de dignidade - permitindo um nível de vida decente - exigível , deve também ser ele o utilizado como critério para efeitos do artº 239º, nº 3, alínea a), do CIRE. II - Em razão do referido em I, o rendimento disponível que o devedor fica obrigado a ceder aos credores através de um fiduciário não deve em circunstância alguma coarctar a possibilidade de o devedor continuar a dispor de um rendimento de valor igual a pelo menos um salário mínimo nacional “.

De tudo o que vem de dizer-se é obvio que terá de concluir-se como manifestamente ilegal a requerida redução para o montante de € 20.000,00, da condição para a suspensão da execução da pena de prisão cominada ao recorrente (equivalente à retirada da quantia mensal de € 333,00 ao valor que recebe a título de reforma - € 1.700,00 que daria o seguinte resultado: €23.800,00 - € 4.000,00 = € 19.800,00:12 meses = € 1.650,00, superior a dois salários mínimos nacionais, cfr. D.L. nº 107/2023 de 17 de novembro), por contrariar abertamente o texto da norma especial do nº 1 do art. 14º do RGIT que condiciona essa suspensão “ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais (…)”.

Por último, também não assiste razão ao recorrente quando afirma que “a condição imposta pelo Tribunal a quo poderá estar apenas a diferir, no tempo, a prisão efetiva do arguido por 10 meses, por lhe ser impossível pagar quantia tão avultada”.

Esta questão vem abordada e tratada no texto do AUJ nº 8/2012 para o qual se remete, onde se conclui pela sem razão de tal entendimento.

Na verdade, a falta de pagamento das importâncias referidas no nº 1 do art. 14º do RGIT tem as consequências enumeradas no seu nº 2, por ser norma especial relativamente ao disposto no art. 55º do Cód. Penal([3]), daí derivando que não é automática a revogação da suspensão da execução da pena aplicada.

Improcede, assim, o recurso interposto.


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III – DECISÃO

Pelo exposto o Tribunal da Relação do Porto decide negar provimento ao recurso interposto pelo arguido e, em consequência, manter a sentença recorrida, mas apenas para não violar a proibição da reformatio in pejus.

Custas pelo recorrente fixando-se em 4 UC a taxa de justiça– cfr. arts. 513º nº 1 do CPP e 8º nº 9 do RCP, com referência à Tabela III anexa ao referido diploma legal.

Notifique – cfr. art. 425º nº 6 do CPP.


Porto, 20/03/2024
Lígia Trovão
Maria Joana Grácio
Castela Rio
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[1] Cfr. “As reações Criminais no Direito Português”, Universidade Católica Editora, págs. 230 e 231.
[2] Cfr proc. nº 2059/13.1TBBRG-C.G1, relatado por António Santos, acedido in www.dgsi.pt
[3] Cfr. J. Lopes de Sousa e M. Simas Santos in “Regime Geral das Infrações Tributárias Anotado”, 2ª edição, 2003, pág. 164.