Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1201/23.9T8VCT-B.G1
Relator: ROSÁLIA CUNHA
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR DE SUSPENSÃO DE DELIBERAÇÕES SOCIAIS
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
PREJUDICIALIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - A nulidade da decisão prevista no art. 615º, nº 1, al, b), do CPC, só se verifica quando ocorra falta absoluta de indicação dos fundamentos de facto ou de direito, não ocorrendo tal vício nas situações de mera deficiência, insuficiência ou mediocridade de fundamentação.
II - Entende-se por causa prejudicial aquela onde se discute e pretende apurar um facto ou situação que é elemento ou pressuposto da pretensão formulada na causa dependente, de tal forma que a resolução da questão que está a ser apreciada e discutida na causa prejudicial irá interferir e influenciar a causa dependente, destruindo ou modificando os fundamentos em que esta se baseia.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

RELATÓRIO

AA instaurou, em 1.4.2023, providência cautelar especificada de suspensão de deliberações sociais contra EMP01..., LDA. pedindo que seja declarada a suspensão da execução da deliberação tomada na assembleia geral de 31.04.2023 e que seja decretada a inversão do contencioso.

Como fundamento do seu pedido alega, em síntese, que na assembleia realizada em 31.4.2023 não existia o quórum necessário, quer para a assembleia se constituir, quer para deliberar, uma vez que não se encontrava presente a requerente, a qual, para além de sócia com uma quota no valor nominal de € 500,00, representa também as quotas com os valores nominais de € 75.000,00 e de € 3.500,00 que pertencem à herança indivisa de BB, da qual a requerente é cabeça de casal.
A assembleia de 31.4.2023 realizou-se apenas com a presença da sócia CC, titular de uma quota com o valor nominal de € 500,00, representativa de 0,625% do capital social, e do representante da sócia DD, titular de uma quota com o valor nominal de € 500,00, representativa de 0,625% do capital social, ou seja, esteve reunido o capital de € 1.000,00, de um total de € 80.000,00.
A requerente não recebeu cópia da ata relativa à assembleia geral.

Uma vez que as deliberações foram tomadas em assembleia geral sem que existisse quórum para tal, as mesmas são anuláveis nos termos do artigo 58º, nº 1, als. a) e b) do CSC.

As sócias DD e CC atuam de modo a obter o poder na sociedade e agem movidas pela vontade única de obter proveitos pessoais e, em último caso, devastar a sociedade.
É muito fácil esvaziar uma sociedade comercial quando as duas gerentes se encontram em conluio e conseguem “manobrar” o destino da sociedade sem qualquer controlo.
A requerida tem património imobiliário que ascenderá, pelo menos a € 1.700.00,00, pelo que não poderá a requerente aguardar pela demora da decisão dos autos principais, devendo de imediato ser suspensas as deliberações tomadas, para que seja possível assegurar que o património da sociedade não fique em risco.
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Regularmente citada, a requerida apresentou oposição, na qual se defendeu por exceção e impugnação, e pediu que:

a) seja declarada a exceção do caso julgado e a requerida absolvida da instância;
caso assim se não entenda,
b) seja declarada a falta de pressupostos e fundamento da providência, determinando-se a extinção da instância;
caso ainda assim se não entenda,
c) seja a oposição julgada procedente por provada e a requerida absolvida do pedido.
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Na matrícula da sociedade requerida existente na Conservatória do Registo Comercial encontra-se efetuado o registo do pedido formulado no presente procedimento cautelar pela AP. ...18 (cf. e-mail de 8.5.2023).
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Em 21.6.2023 foi proferido despacho (ref. Citius 50646521) com o seguinte teor:

Pese embora se aguarde ainda a resposta da representante entretanto nomeada à Ré, entende o Tribunal que a questão que se encontra em discussão no procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais entretanto interposto com o n.º 1517/23.... neste Juízo (e que bem é conhecido das partes neste processo, estando aliás ali já agendada a respectiva audiência final) – qual seja, precisamente, a de apreciação da validade da deliberação de destituição e nomeação de gerentes (da ora Autora e respectivo marido) – terá influência directa no andamento destes autos, constituindo assim uma causa prejudicial nos termos da previsão do art.º 272.º do CPC.---
Assim sendo, ao abrigo do disposto nos art.ºs 269.º, n.º 1, al. c) e 272.º, n.ºs 1 e 3 do CPC, declaram-se suspensos os termos da presente instância até ao trânsito em julgado da decisão que venha a ser proferida no procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais entretanto interposto com o n.º 1517/23.... deste Juízo do Comércio.---
Junte, desde já, aos autos certidão extraída do citado processo n.º 1517/23...., da qual constem os respectivos articulados e despacho de agendamento da audiência final ali já proferido.---
Oportunamente, junte certidão da decisão que ali venha a ser proferida, com nota do respectivo trânsito em julgado.--- “
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A autora não se conformou com o despacho de 21.6.2023 (ref. Citius 50646521) e interpôs o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:
A.  
Na sequência do despacho proferido de suspensão da instância, que teve como fundamento a putativa existência de uma causa prejudicial, nos termos do art. 272º do CPC, veio a Recorrente apresentar o presente recurso, por não concordar com o despacho, cuja fundamentação também não compreende, por inexistir.
B.  
O referido despacho surgiu sem qualquer requerimento ou contexto que o justificasse, pelo que a Requerente também não consegue identificar pela oportunidade o seu surgimento e a sua argumentação.
C.  
A verdade é que o despacho não tem qualquer fundamentação/justificação, motivo pelo qual não consegue a Requerente refutar os pressupostos considerados pelo tribunal, assim como também não os consegue compreender.
D.  
Sumariamente, no mesmo dia foram feitas duas atas, respeitantes a 2 assembleias gerais da sociedade ora Requerida.
E.  
Sucede que, tendo a Requerente tomado conhecimento desta circunstância e, pese embora sem conhecimento do conteúdo da ata, veio apresentar procedimento cautelar nos presentes autos, uma vez que houve uma convocatória para assembleia geral, no referido dia e na sede social, em cumprimento do disposto no art. 380º do CPC.
F.  
Efetivamente, no dia 31.03.2023 todos os sócios estavam presentes na sede social, porquanto houve uma convocatória, que se encontra junta como Doc. ... da petição inicial, que foi remetida para agendamento de assembleia geral de sócios.
G.  
Sucede que, na sequência do envio da referida convocatória, a sócia aqui Requerente/Recorrente requereu aditamento à ordem de trabalhos – cfr. Doc. ... da petição inicial -, tendo as gerentes inserido, não só os pontos da ordem de trabalhos requeridos pela Recorrente, mas também tendo inserido um outro ponto – Cfr. Doc. ... da petição inicial.
H.  
Ora, no dia da assembleia todos os sócios estavam presentes ou representados, tendo-se reunido e iniciado a assembleia na sala grande da sede social.
I.
Sucede que, logo no início e após discussão do tema da presidência da assembleia, com a qual a Sra. Notária, a sócia CC e o representante da sócia DD não concordaram, decidiram ausentar-se, comunicando que iam fazer outra assembleia na sala ao lado.
J.  
Nos presentes autos está em causa a assembleia paralela que as sócias decidiram fazer após se terem ausentado da assembleia que estava a decorrer, sendo que a matéria em causa no procedimento cautelar que corre termos sob o número 1517/23.... é a nulidade/anulação das deliberações tomadas na assembleia que iniciou em primeiro lugar e da qual as restantes sócias se ausentaram, concretamente as sócias pretendem anular a sua destituição, bem como a nomeação dos novos gerentes.
K.  
Assim, não se compreende por que motivo é que o tribunal considera que a referida ação tem qualquer influência nos presentes autos, desde logo porque nada explica/fundamenta nesse sentido, pelo que deverá o presente despacho ser revogado por constituir uma nulidade, nos termos do art. 615º, nº 1, al. b) do CPC.
L.  
Repare-se que, ao juiz cabe especificar os fundamentos de facto e de direito das decisões que toma, conforme disposto no art. 607º, nº 3 do CPC, o que manifestamente não foi cumprido no despacho em litígio.
M.  
Tendo em atenção tudo o exposto, deverá o despacho recorrido ser considerado nulo.
N.  
Por outro lado, e ainda que se considere que o despacho recorrido não é nulo, também não se compreende por que motivo o tribunal suspendeu os presentes autos e não o inverso, visto que o processo 1517/23.... é muito posterior aos presentes autos.
O.  
Os presentes autos deram entrada em juízo em 10.04.2023 e o processo 1517/23.... deu entrada 1 mês depois, ou seja em 11.05.2023, motivo pelo qual não se compreende por que motivo a suspensão opera nos presentes autos e não no processo mais recente, ou seja no processo 1517/23.....
P.  
No entanto, ainda que a ação que corre termos sob o número de processo 1517/23.... seja totalmente procedente, a consequência será a suspensão das deliberações impugnadas, o que em nada se relaciona com a impugnação de deliberações ocorrida nos presentes autos, desde logo porque nenhuma decisão que seja proferida no mencionado processo é suscetível de destruir o fundamento ou a razão de ser da presente causa.
Q.  
Em face do exposto, sempre se dirá que a decisão proferida terá que ser revogada, uma vez que para além de não estarem cumpridos os requisitos, também padece de nulidade por falta de fundamentação.”
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido na 1ª instância como de apelação, a subir imediatamente em separado, com efeito devolutivo, tendo sido corrigido o modo de subida, por despacho proferido neste Tribunal da Relação, em 21.2.2024 (ref. Citius 9299876), o qual determinou que o recurso deveria subir nos próprios autos e ordenou a sua requisição ao tribunal recorrido.
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O tribunal recorrido pronunciou-se sobre a nulidade invocada, considerando que a mesma não se verifica.
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Foi fixado à causa o valor de € 30.001,00 (despacho de 17.1.2024, ref. Citius 51579484).
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Foram colhidos os vistos legais.

OBJETO DO RECURSO

Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações do recorrente, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, as questões relevantes a decidir, elencadas por ordem de precedência lógico-jurídica, são as seguintes:

I - saber se a decisão é nula;
II - saber se deve, ou não, ser declarada a suspensão da instância por o processo nº 1517/23.... constituir causa prejudicial relativamente aos presentes autos.
III - na afirmativa, saber se deveria ser suspenso o processo nº 1517/23...., por ter sido instaurado em segundo lugar.

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Os factos que relevam para a decisão a proferir são os que se encontram descritos no relatório e resultam da consulta dos autos.

Acrescem ainda os seguintes factos, os quais resultam da consulta do processo nº 1517/23.... e certidão junta a estes autos:

1. DD e CC instauraram, em 11.5.2023, procedimento cautelar de suspensão de deliberação social contra EMP01..., LDA., procedimento a que foi atribuído o nº ...3....
2. No requerimento inicial desse procedimento, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, formularam pedido no sentido de o tribunal:

decretar com a urgência possível e sem a audiência da requerida:
1 - a nulidade e/ou anulação e consequente suspensão da deliberação de destituição e nomeação de gerentes qualificada e requalificada nos termos da certidão permanente da requerida acima melhor identificada, cujo cancelamento deverá ser declarado e executado;
2 - Subsidiariamente,
a) declarar a nulidade de todos os actos que abusivamente tenham sido, entretanto, praticados pela putativa e falsa gerência;
b) declarar que a sócia AA por si ou por terceiro por si mandatado ou por representante, se abstenha de praticar actos de registo até que seja concluída a partilha das acções da requerida, por forma a obviar ao constante e sucessivo recurso ao tribunal, o que tudo causa prejuízo à requerida”.

3. No procedimento cautelar nº 1517/23.... foi proferida decisão com o seguinte teor:

Deste modo, entende-se que, face à renovação das deliberações cuja (suspensão por) nulidade ou anulabilidade se pedia, cumpre julgar aquela improcedente e absolver a Ré EMP01..., Ld.ª do/s pedido/s formulado/s nos presentes autos pelas Autoras DD e CC.”
4. A referida decisão não transitou em julgado uma vez que dela foi interposto recurso, ainda não decidido.

FUNDAMENTOS DE DIREITO

I – Nulidade da decisão

A recorrente invoca que a decisão é nula por falta de fundamentação, nos termos do art. 615º, nº 1, al. b), do CPC (diploma ao qual se referem todas as normas subsequentemente citadas sem menção de diferente origem).

Dispõe o art. 615º, nº 1, que é nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

Esta norma é aplicável aos despachos, por força do disposto no art. 613º, nº 3.

As nulidades da decisão são vícios formais e intrínsecos de tal peça processual e encontram-se taxativamente previstos no normativo legal supra citado.
Os referidos vícios, designados como error in procedendo, respeitam unicamente à estrutura ou aos limites da decisão.
As nulidades da decisão, como seus vícios intrínsecos, são apreciadas em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento estes a sindicar noutro âmbito (cf. Acórdão desta Relação de 4.10.2018, Relatora Eugénia Cunha, in www.dgsi.pt).

O vício da sentença decorrente da não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, abreviadamente designado como vício de falta de fundamentação, e previsto na al. b), encontra-se diretamente relacionado com a obrigação de o juiz fundamentar as suas decisões que não sejam de mero expediente, obrigação essa que lhe é imposta pelos arts. 154º e 607º, nºs 3 e 4 e pelo art. 205º, nº 1, da CRP.
A exigência de fundamentação exerce a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo tribunal superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da justiça, inerente ao ato jurisdicional (José Lebre de Freitas, in A Ação Declarativa Comum À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, pág. 317).
Impõe-se ao juiz não só que explicite o que decidiu, mas também que indique os motivos que determinaram tal decisão, esclarecendo porque assim decidiu.
Na verdade, só sabendo os concretos fundamentos que justificaram a prolação da decisão as partes terão a possibilidade real e efetiva de proceder à sua impugnação e suscitar a sua sindicância por um tribunal superior. E o tribunal superior só pode sindicar a decisão se conhecer os fundamentos de facto e de direito que subjazem à decisão proferida.
Todavia, é entendimento pacífico e consolidado quer da doutrina, quer da jurisprudência, que só a falta absoluta da indicação dos fundamentos de facto ou de direito será geradora da nulidade em causa, não ocorrendo tal vício nas situações de mera deficiência, insuficiência ou mediocridade de fundamentação.
Assim, como já afirmava o Prof. Alberto dos Reis, (in Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 140) “há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade”.
Em idêntico sentido, referem Antunes Varela e outros (in Manual de Processo Civil, 2ª edição, p. 687), que, “para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente e incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”.
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Aplicando estas premissas ao concreto caso em análise, verifica-se que a decisão recorrida, cujo teor supra se transcreveu, contém uma muitíssimo escassa fundamentação de facto e de direito, mas não se pode afirmar que exista uma absoluta ausência de fundamentação a esse nível.
Com efeito, a decisão refere que no processo nº 1517/23.... está em causa a apreciação da validade da deliberação de destituição e nomeação de gerentes da autora e respetivo marido, mandando juntar certidão dos articulados desse processo, e considera que a questão a decidir nesse processo tem influência direta no andamento dos presentes autos, constituindo, assim, uma causa prejudicial, nos termos da previsão do art.º 272.º.

Por conseguinte, a decisão recorrida contém um mínimo de fundamentação, quer de facto, quer de direito.

De referir que, para efeitos de apreciação da existência do vício de nulidade da decisão, não releva se a decisão tomada é juridicamente correta e acertada do ponto de vista material ou substancial. Essa perspetiva de análise só importa para efeitos de existência de erro de julgamento, questão que de seguida se analisará.
Porém, do ponto de vista da existência de nulidade, só há que apurar se a decisão contém ou não falta absoluta de fundamentação e, no caso, tal não se verifica.

Conclui-se do expendido que a decisão recorrida não padece de nulidade por falta de fundamentação, improcedendo esta questão recursória.

II – Suspensão da instância por existência de relação de prejudicialidade entre o processo nº 1517/23.... e os presentes autos

A decisão recorrida considerou que existe uma relação de prejudicialidade entre o processo nº 1517/23.... e os presentes autos, pelo que determinou a suspensão da instância até que seja proferida decisão naquele processo.

A recorrente discorda e considera que não existe qualquer relação de prejudicialidade entre os dois processos porque a “suspensão ou até mesmo a anulação das deliberações tomadas na assembleia da qual os sócios/representantes de sócios se decidiram ausentar em nada influi na decisão dos pedidos apresentados na presente ação, desde logo porque nenhuma decisão que seja proferida no mencionado processo vai destruir o fundamento ou a razão de ser da presente causa”.

Adiante-se, desde já, que tem inteira razão, conforme passaremos a demonstrar.

Estabelece o art. 272º, nº 1, que o tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado.
Assim, esta norma estabelece duas causas de suspensão da instância: a existência de causa prejudicial e a ocorrência de outro motivo justificado. Para o caso, apenas releva a primeira, pois foi com base na existência de causa prejudicial que a decisão recorrida determinou a suspensão da instância.
Uma ação é prejudicial doutra sempre que naquela se ataca um ato ou facto jurídico que é pressuposto necessário desta. A relação de dependência entre uma ação e outra, como causa de suspensão da instância, assenta no facto de numa ação se discutir, em via principal, uma questão que é essencial para a decisão da outra, em termos de a decisão proferida numa ser suscetível de inutilizar os efeitos pretendidos na outra, por a resolução da primeira - a prejudicial -, por si só, poder modificar uma situação jurídica que tem de ser considerada para a decisão da segunda - a dependente.
Como entendido nos Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora, do Porto e de Lisboa, de 21.1.2016, 18.12.2018 e 24.10.2019 (in www.dgsi.pt) entende-se por causa prejudicial aquela onde se discute e pretende apurar um facto ou situação que é elemento ou pressuposto da pretensão formulada na causa dependente, de tal forma que a resolução da questão que está a ser apreciada e discutida na causa prejudicial irá interferir e influenciar a causa dependente, destruindo ou modificando os fundamentos em que esta se baseia.

Ora, nos presentes autos pretende-se anular as deliberações tomadas na assembleia de 31.4.2023 que se realizou apenas com a presença da sócia CC e do representante da sócia DD.
A aqui requerente alega desconhecer o teor dessas deliberações porquanto a ata não lhe foi enviada.

No processo n.º 1517/23.... pretende-se anular as deliberações tomadas na assembleia de 31.4.2023, que se realizou apenas com a presença da sócia AA, relativas à destituição de CC e de DD do cargo de gerentes e à nomeação de AA e EE como novos gerentes.

Portanto, nos dois processos pretende-se anular deliberações tomadas em duas assembleias gerais que, embora tenham tido lugar no mesmo dia 31.4.2023, são absolutamente distintas e se realizaram com a presença de sócios distintos.

Com o respeito que nos merece opinião contrária, não se vê que a deliberação que procedeu à destituição de gerentes e à nomeação como novos gerentes da requerente e de EE tenha uma qualquer relação de prejudicialidade com a decisão a proferir nos presentes autos, de acordo com o conceito que acima definimos, em termos de a suspensão ou anulação dessa deliberação poder modificar uma situação jurídica que tem de ser considerada para a decisão a proferir nestes autos.

Pelo contrário, consideramos que se trata de matérias distintas e independentes, referentes a duas assembleias gerais diferentes e realizadas com a intervenção de diferentes sócios.

A autora alega que nem sequer conhece o teor da deliberação tomada, uma vez que a ata não lhe foi enviada, e o vício que invoca como fundamento da sua pretensão de suspensão da deliberação não se prende com o mérito da deliberação, mas antes com a circunstância de ela ter sido tomada sem a existência do necessário quórum deliberativo.

Ora, tendo em conta o vício invocado que se discute nos presentes autos, o facto de vir, ou não, a ser suspensa a deliberação de destituição dos anteriores gerentes e de nomeação de novos gerentes não condiciona nem influencia a decisão a proferir nestes autos.
Não existe, assim, relação de prejudicialidade entre o processo n.º 1517/23.... e os presentes autos, não havendo fundamento para declarar suspensa a instância até que seja proferida decisão naquele processo, pelo que a decisão recorrida tem de ser revogada e os autos deverão prosseguir os seus ulteriores termos.
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Atenta a inexistência de relação de prejudicialidade entre estes autos e o processo nº 1517/23...., fica prejudicada a apreciação da terceira questão recursória.
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Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.
Tendo o recurso sido julgado procedente, com a consequente revogação da decisão recorrida, e não havendo parte vencida, porquanto a recorrida não sustentou no processo qualquer pretensão justificativa da prolação da decisão ora revogada, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com o critério do proveito constante da disposição legal citada.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida, consideram que não existe relação de prejudicialidade entre o processo n.º 1517/23.... e os presentes autos e determinam que os autos prossigam os seus ulteriores termos.

Custas da apelação pela recorrente.
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Sumário (da responsabilidade da relatora, conforme art. 663º, nº 7, do CPC):

I - A nulidade da decisão prevista no art. 615º, nº 1, al, b), do CPC, só se verifica quando ocorra falta absoluta de indicação dos fundamentos de facto ou de direito, não ocorrendo tal vício nas situações de mera deficiência, insuficiência ou mediocridade de fundamentação.
II - Entende-se por causa prejudicial aquela onde se discute e pretende apurar um facto ou situação que é elemento ou pressuposto da pretensão formulada na causa dependente, de tal forma que a resolução da questão que está a ser apreciada e discutida na causa prejudicial irá interferir e influenciar a causa dependente, destruindo ou modificando os fundamentos em que esta se baseia.
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Guimarães, 18 de abril de 2024

(Relatora) Rosália Cunha
(1º/ª Adjunto/a) Fernando Manuel Barroso Cabanelas
(2º/ª Adjunto/a) Maria Gorete Morais