Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
8/21.2GTVCT.G1
Relator: PEDRO FREITAS PINTO
Descritores: PERDA DE VANTAGENS
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I – No instituto da perda de vantagens prevista no artigo 36º do DL 15/93, de 22/01, está fundamentalmente em causa um propósito de dissuasão da prática de crimes, segundo o princípio de que “o crime não compensa”.
II – Para efeitos de perda de vantagens, numa situação de tráfico de substancias estupefacientes, deve atender-se à soma aritmética dos montantes recebidos pelo arguido pela sua venda, não havendo lugar ao desconto das quantias que ele gastou na compra desse mesmo produto.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes que integram a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I - Relatório

Decisão recorrida.

No âmbito do Processo Comum (tribunal coletivo) nº 8/21...., do Tribunal Judicial da Comarca de ... – Juízo Central Criminal de ... foi proferido acórdão no dia 18 de outubro de 2023, cujo dispositivo se transcreve:
“Pelo exposto, decide-se:
A. CONDENAR o arguido AA pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico ou outras actividades ilícitas, p. e p. pelo art. 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, com referência à tabela I-C, na pena de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de prisão, cuja execução se suspende por igual período de tempo, sujeita a regime de prova, direccionado para a sua adição.
B. DECLARAR PERDIDOS A FAVOR DO ESTADO:
a) todo o produto estupefaciente apreendido, ordenando-se a sua destruição
(cfr. arts. 35.º, n.º 2, e 62.º, n.º 6 do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22.01), após trânsito;
b) os telemóveis, a balança, as duas caixas de mortalha e o moinho, após
trânsito.
C. DECLARAR IMPROCEDENTE o pedido de perda de vantagens formulado pelo
Ministério Público, ABSOLVENDO o arguido”.
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Recurso apresentado

Inconformado com tal decisão, o Ministério Público veio interpor o presente recurso e após o motivar, apresentou as seguintes conclusões e petitório, que se reproduzem:

1.Vem o presente recurso interposto do douto acórdão, restrito à declaração de improcedência do pedido de perda de vantagens formulado pelo Ministério Público, dele absolvendo o arguido AA.
2.Para efeitos do disposto no art. 36º, n.º 2, 3 e 4 do DL 15/93, de 22/01, o perdimento a favor do Estado deve incidir na vantagem bruta obtida pelo arguido.
3.Estando em causa a venda de estupefaciente não se deveria ter que descontar os custos, por ser um negócio ilícito.
4.Caso assim não se entenda, deverá ser então declarada perdida a vantagem líquida.
5.Possuindo o Tribunal a quo todos os elementos necessários para calcular essa vantagem líquida devia tê-lo feito, pelo que ao não o fazer, incorreu, salvo o devido respeito, em erro na aplicação do direito à matéria de facto provada (art. 410º, n.º 3 do CPP).
6.De acordo com a matéria de facto provada, tendo por base o preço máximo de € 6,00 (seis euros) a grama, de compra pelo arguido e venda aos consumidores a €10,00 (dez euros), igual aos factos provados (sempre em favor do arguido, já que este referiu que tanto comprava a €5 como a €6 – deduzindo outros eventuais custos e in dubio por reo), nos termos do art. 36º, n.º 4 do DL 15/93, de 22/01, deve ser declarado perdido a favor do Estado:
a.   A vantagem bruta obtida pelo arguido com a prática do crime de Tráfico de estupefacientes pelo qual foi condenado (art. 21º do mesmo diploma legal) – valor mínimo de €12.032,00
b.   Ou, pelo menos, a vantagem líquida, que o Venerando Tribunal superior apurar, mediante os factos provados, e que se calculou, sempre pelo mínimo, no valor global de €4.946,00.
7. Urge demonstrar que o crime não compensa, só assim se respeitando a prevenção especial e, sobretudo geral, mostrando que não se tolera uma situação antijurídica, na defesa do Estado de Direito.
8. Pelo exposto, e sempre salvo o devido respeito, o Tribunal recorrido violou os art. 36º, n.º 2, 3 e 4 do DL 15/93, de 22/01 e 410º, n.º 3 do CPP.
Nesta medida, revogando parcialmente o douto acórdão recorrido e, nos termos do art. 36º, n.º 1, 2, 3 e 4 do DL 15/93, de 22/01, declarando perdido a favor do Estado:
ü A vantagem bruta obtida pelo arguido com a prática do crime de Tráfico de estupefacientes pelo qual foi condenado (art. 21º do mesmo diploma legal) – valor mínimo de €12.032,00
ü Ou, pelo menos, a vantagem líquida, que o Venerando Tribunal superior apurar, mediante os factos provados, e que se calculou, sempre pelo mínimo, no valor global de € 4.946,00”.
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Não foi apresentada resposta ao recurso.
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Tramitação subsequente

Neste Tribunal da Relação de Guimarães, o processo foi com vista ao Ministério Público, tendo o Exmº. Senhor Procurador-Geral Adjunto, emitido douto parecer, no sentido da procedência do recurso.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417º nº2 do CPP não tendo sido apresentada resposta.
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Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
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II – Fundamentação.

Cumpre apreciar o objeto do recurso.

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas essas questões, as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso.
As questões que se colocam à apreciação deste tribunal de recurso é a de saber se deve ser declarada perdida a favor do Estado a vantagem obtida pelo arguido no cometimento do crime de tráfico de substancias estupefacientes e, no caso afirmativo, deve ser considerado o valor bruto ou o líquido.
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Para tanto há a considerar a seguinte matéria de facto dada por provada pelo tribunal recorrido:

1. Desde data não concretamente apurada do ano de 2017 e até, pelo menos,
4 de Abril de 2022, o arguido AA, conhecido pela alcunha de “BB”, dedicou-se à actividade de transporte, venda, cedência e distribuição de cannabis fls./sumidades (vulgo “erva ou liamba”) e, ocasionalmente, resina (vulgo “haxixe”), a diversos consumidores que para esse efeito o procuravam.
2. O arguido AA, era utilizador dos telemóveis marca ..., modelo ..., com o IMEI ...50, titular do n.º ...77 e marca ..., modelo ..., com cartão SIM acoplado com o n.º ...01 e com os IMEIS ...66 e ...69, sendo através dos referidos números e aparelhos, onde também tinha instalada a aplicação “Messenger” da rede social “Facebook”, assim como a rede social “Instagram” e a aplicação “WhatsApp”, redes sociais estas e aplicação por onde desenvolvia grande parte dos contactos com os consumidores para proceder à venda da cannabis.
3. Os encontros com os consumidores tinham lugar, particularmente nos Municípios dos ... - designadamente junto do estabelecimento comercial designado por “EMP01...”, junto do “piolho”, na zona da ecovia, em ..., junto cemitério ..., junto da ..., junto da ecovia junto ao ..., junto da igreja e ponte de ..., junto da igreja de ..., junto do skate park, nas traseiras do hotel “EMP02...”, no Largo ... e em ... - e, embora em menor escala, de ... – nomeadamente, no parque da vila e junto ao cemitério -, ou mesmo nas residências dos próprios consumidores.
4. Para adquirir tais substâncias, deslocava-se às cidades de ... ou ..., bem como a ..., onde pagava entre 5€ ou 6€ cada grama de cannabis, o que trazia consigo no seu veículo, fazendo-se acompanhar, por vezes, por CC.
5. Ao longo do período referido no ponto 1 e nos locais referidos no ponto 3, o arguido vendeu ou cedeu cannabis fls./sumidades e/ou resina, pelo menos, aos seguintes consumidores:
a) ao DD, titular do n.º de telefone ...62: vendeu-lhe, no período compreendidas entre meados do ano de 2019 e até ao verão de 2021, com uma regularidade de, pelo menos, 3 vezes por mês, o equivalente a 1,5g de liamba, pelo preço de 10,00€, perfazendo um consumo mensal de € 30,00; num total de 720,00€ (setecentos e vinte euros); 
b) à EE, titular do n.º de telefone ...23:
vendeu-lhe, no período compreendido entre o início do ano de 2019 e até ao final do verão de 2020, em pelo menos em três ocasiões distintas, o equivalente a uma porção de liamba, pelo preço de 10,00€ a 20,00€; num total de 60,00€ (sessenta euros);
c) ao FF, titular do número de telefone ...69: vendeu-lhe, no período compreendidas entre o ano de 2018 e o ano de 2021 haxixe, o que fez uma ou duas vezes, por valores não concretamente apurados, e 1g de liamba, cerca de duas ou três vezes por mês, pelo preço de 10,00€ por cada grama, num total de, pelo menos, 2.160,00€ (dois mil cento e sessenta euros);
d) ao GG, titular do n.º de telefone ...78: cedeu-lhe, em ocasiões não concretamente apuradas, entre Janeiro a Março de 2020 e o verão até finais de 2020, liamba, em quantidade equivalente a € 10,00 por semana;
e) ao HH, titular do n.º de telefone ...09: cedeu-lhe, em ocasiões não concretamente apuradas e durante os anos de 2020 e 2021, liamba em quantidade equivalente a 40,00€ mensais;
f) ao GG, titular do n.º de telefone ...26: vendeu-lhe, durante o período compreendido entre Janeiro e Outubro de 2021, com uma regularidade média de uma vez por semana, uma porção de liamba pelo valor de 10€ cada;
g) a II, titular do n.º de telefone ...52: vendeu-lhe liamba, no período compreendido entre Setembro de 2020 e Janeiro de 2021, no equivalente a 150,00€ mensais; 
h) ao JJ, titular do telemóvel n.º
...80: vendeu-lhe liamba, no período compreendido entre meados do ano de 2017 e o mês de Março de 2021, numa média de 3 vezes por semana, o equivalente a 3g de liamba, pelo preço de 10,00 cada grama;
i) ao KK, titular do telemóvel n.º ...27:
vendeu-lhe, em duas distintas, cujas datas não se apuraram, 1g de liamba pelo preço de 10,00€ cada;
j) ao LL, titular do telemóvel n.º ...45:
vendeu-lhe, em duas ou três ocasiões distintas, em inícios de 2020, mas antes do mês de Março, liamba pelo preço de 10€ cada grama; 
k) ao MM, titular do telemóvel n.º ...70: vendeu-lhe, numa única ocasião, em data não concretamente apurada mas entre os anos de 2019 e 2020, 5g de liamba pelo preço de € 50,00. 
l) ao NN: vendeu-lhe liamba, com periodicidade quinzenal no período compreendido entre Dezembro de 2020 e Junho de 2021 - o equivalente a 10 gramas de liamba de cada vez, pelo preço de € 50,00; 
m) ao OO, titular do n.º de telefone ...16:
vendeu-lhe, em pelo menos em 3 ocasiões distintas entre Janeiro e Abril de 2022, 2g de liamba, pelo preço de 10,00€ a grama; 
n) ao PP, titular do n.º de telefone ...50:
vendeu-lhe em, pelo menos, em 3 ocasiões distintas no verão de 2021, 1g de liamba, pelo preço de 10,00€; 
o) ao QQ, titular do n.º de telefone ...45: vendeu-lhe, em diversas ocasiões, não concretamente apuradas, no período compreendido, entre o verão do ano de 2020 e o início do ano de 2022, 1 grama de liamba pelo preço de 10,00;
p) ao RR, titular do n.º de telefone ...12: vendeu-lhe, entre o final do ano de 2019 e o final do ano de 2021, com uma periodicidade mensal (e com algumas interrupções), 2g de liamba pelo preço de 20,00€.
6. No dia 14 de Março de 2021 pelas 16h49m, o arguido AA, o qual seguia ao volante do veículo automóvel matrícula RC-..-.. na A28, ao km 60,00, em ..., ..., detinha:
- cannabis (fls./sumidades), com o peso líquido de 28,905g, com um grau de pureza de 9,7% (THC), equivalente a 56 doses individuais; 
- 1 (uma) balança de precisão marca ...” de cor ...;
- 1 (um) moinho usado (grinder); - 2 caixas de mortalhas;
- 1 (um) telemóvel marca ..., modelo ..., com o IMEI
...50 e cartão SIM ...77....
7. No dia ../../2022, no interior da residência do arguido sita no Beco ..., ..., ..., ... e no interior do veículo de matrícula ..-..-ES, o arguido detinha:
a) na sua pessoa:
- 1 (um) telemóvel marca ..., modelo ..., com cartão SIM acoplado com o n.º ...01, com os IMEIS ...66 e ...69; b) no seu quarto:
- 37 sementes de cannabis;
- 1 conjunto de 3 frascos de fertilizante da marca ..., 100% organic certified”, ...;
c) no veículo:
- cannabis (fls./sumidades), com o peso líquido de 21,704g, com um grau de pureza de 8,2% (THC), equivalente a 36 doses individuais;
- cannabis (fls./sumidades), com o peso líquido de 5,149g, com um grau de pureza de 5,1% (THC), equivalente a 5 doses individuais; 
9. O arguido AA conhecia a natureza e as características dos produtos estupefacientes acima identificados, que possuía e sabia que não podia proceder ao seu transporte, à sua detenção, venda e cedência a terceiros a qualquer título, por carecer de qualquer autorização, e, não obstante isso, quis deter tal substância e cedê-la e vendê-la a terceiros.
10. Os bens e objectos referidos nos pontos 6 e 7 provinham ou eram utilizados na actividade desenvolvida pelo arguido, nomeadamente para combinar os locais de entrega do estupefaciente e/ou foram adquiridos com tais proveitos.
11. O arguido actuou sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Mais se provou que:

12. À data dos factos, o arguido AA, integrava o agregado familiar constituído pelos pais. Porém, durante um período de cerca de cinco meses, o arguido viveu temporariamente em ..., acabando por regressar ao agregado de origem.
Ao nível profissional o arguido trabalhava na empresa, “EMP03...” em ..., onde exercia funções de ajudante de carpinteiro, local onde permaneceu durante 11 meses. Posteriormente, em 2020, trabalhou numa empresa em nome individual de venda de rações/oficina de reparações, na freguesia .../..., onde permaneceu cerca de um ano e seis meses.
O arguido vivia integrado no agregado familiar dos pais, pelo que o dinheiro que auferia da actividade que exercia na altura era canalizado para as suas despesas pessoais.
O seu quotidiano era passado no convívio com grupo de pares com comportamentos pro-criminais, dos quais se tem vindo a afastar
Actualmente AA, mantém residência na Freguesia ... em ..., com o pai, 63 anos e com a mãe 60 anos. O espaço habitacional proporciona condições de habitabilidade e conforto, beneficiando de quintal onde os seus elementos cultivam produtos hortícolas para consumo interno do agregado.
Desde que abandonou os estudos, aos 18 anos de idade, tendo frequentado o 12.º ano de escolaridade que não concluiu, AA, apresenta um percurso profissional pautado por algumas experiências de curta duração em várias áreas, intercaladas com períodos de desemprego, registando um curto período de emigração no .... 
Actualmente, encontra-se desempregado desde ../../2023, perspectivando emigrar para ..., onde pensa trabalhar na construção civil (montagem de pladur), país onde tem família e de quem espera apoio.
As finanças familiares são actualmente garantidas pelos seus pais, ambos activos profissionalmente e que asseguram as despesas básicas do arguido.
Da análise da declaração de IRS do arguido referente ao ano de 2023, o rendimento anual aponta para um valor de 9.927,56€.
Relativamente às despesas pessoais (combustível e tabaco) refere ser, igualmente, suportadas pelos pais em valores pontuais e irregulares.
AA, iniciou o consumo de produtos estupefacientes (haxixe e canábis) aos 16/17 anos de idade, ainda em contexto escolar, nunca efectuou tratamento de desintoxicação e mantém ainda consumos destas substancias de forma esporádica.
Beneficia do apoio consistente por banda dos pais. 
13. Não lhe são conhecidos antecedentes criminais.
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O Ministério Público pretende, em primeira linha, que seja declarada perdida a favor do Estado a vantagem bruta obtida pelo arguido com a prática do crime de tráfico de estupefacientes pelo qual foi condenado, no valor mínimo de € 12.032,00.
Preceitua o artigo 110º do Código Penal:
“1  - São declarados perdidos a favor do Estado:
a) Os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objetos que tiverem sido produzidos pela sua prática; e
b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
2 - O disposto na alínea b) do número anterior abrange a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem.
3 - A perda dos produtos e das vantagens referidos nos números anteriores tem lugar ainda que os mesmos tenham sido objeto de eventual transformação ou reinvestimento posterior, abrangendo igualmente quaisquer ganhos quantificáveis que daí tenham resultado.
4 - Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.
5 - O disposto nos números anteriores tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz.
6 - O disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido”.
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O D.L. 15/93 de 27 de janeiro, que como refere o seu artigo 1º tem como objecto a definição do regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, preceitua no artigo 36º. sob a epígrafe “Perda de coisas ou direitos relacionados com o facto”:

“1 – (…)
2 - São também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos de terceiro de boa fé, os objectos, direitos e vantagens que, através da infracção, tiverem sido directamente adquiridos pelos agentes, para si ou para outrem.
3 - O disposto nos números anteriores aplica-se aos direitos, objectos ou vantagens obtidos mediante transacção ou troca com os direitos, objectos ou vantagens directamente conseguidos por meio da infracção.
4 - Se a recompensa, os direitos, objectos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor.
5 - Estão compreendidos neste artigo, nomeadamente, os móveis, imóveis, aeronaves, barcos, veículos, depósitos bancários ou de valores ou quaisquer outros bens de fortuna”.
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Como ensina Figueiredo Dias [1] “A essência político-criminal da regulamentação contida no art. 109. parece só poder alcançar-se quando se parta da ideia de que ela é editada em função dominante (senão mesmo exclusiva) da perda de qualquer vantagem patrimonial derivada do facto ilícito-típico; atribuindo-se à expressão «vantagem» (antes que o sentido estrito em que é usada pelo art. 109.°-2, quando posta ao lado dos objectos, instrumentos, produtos e direitos relacionados com o crime) um sentido amplo que abrange tanto a recompensa dada ou prometida aos agentes, como todo e qualquer benefício patrimonial que resulte do crime ou através dele tenha sido alcançado.
A distinção de um regime da perda relativa a instrumentos e produto, por um lado, e a vantagens, por outro, justifica-se amplamente. Desde logo (e sobretudo) porque é diferente, num caso noutro, o fundamento político-criminal do regime, se bem que ambos assentem como não poderia deixar de ser, dada a sua natureza de instrumentos sancionatórios de carácter criminal e considerações de prevenção. Nos instrumentos e produto está e causa a sua perigosidade imediata, resultante da sua adequação para a prática de crimes. Nas vantagens, diversamente, o que está e causa primariamente é um propósito de prevenção da criminalidade em globo, ligado à ideia antiga, mas nem por isso menos prezável de que «o 'crime' não compensa». Ideia que se deseja reafirmar tanto sobre o concreto agente do ilícito-típico (prevenção especial ou individual), como nos seus reflexos sobre a sociedade no seu todo (prevenção geral), mas sem que neste último aspecto deixe de caber o reflexo da providência ao nível do reforço da vigência norma (prevenção geral positiva ou de integração)”.
Refere por sua vez Pedro Caeiro [2] “O crime, por definição, compensa (…) É precisamente por o crime ser, estruturalmente, compensação para o seu autor, que a lei procura levantar obstáculos contra a sua prática”, adiantando ainda que
“o instituto da perda de vantagens constitui um tertium genus. Ou seja, não configura uma pena acessória porque se basta com um facto ilícito típico, não carecendo de estar verificada a culpa na sua produção, mas também não configura uma medida de segurança, uma vez que esta implica que se confirme a perigosidade do agente de vir a praticar factos homogéneos (…) a pena exige culpa, a medida de segurança exige a perigosidade do agente, a perda basta-se, muito prosaicamente, com a existência de vantagens patrimoniais obtidas através da prática de um crime».
Conforme bem se salienta no recente acórdão desta Relação de Guimarães de 5 de março de 2024 [3] “A perda de vantagens é, assim, exclusivamente determinada por necessidades de prevenção, sendo considerada como uma medida sancionatória típica análoga à medida de segurança, visando o Estado que nenhum benefício venha a resultar para o arguido pela prática do ilícito”.
Aqui chegados há que apurar se deve ser declarada perdida a vantagem bruta ou a vantagem líquida obtida.
O acórdão recorrido a propósito do pedido formulado pelo Ministério Público
de perdimento das vantagens, teceu as seguintes considerações: “O Ministério Público formulou contra o arguido pedido de perda de vantagens do facto ilícito típico a favor do Estado, no valor de 35.744,00€.
Nos termos do art. 36.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01 “São também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos de terceiro de boa fé, os objectos, direitos e vantagens que, através da infracção, tiverem sido directamente adquiridos pelos agentes, para si ou para outrem”.
Acrescenta o n.º 4 do mesmo artigo que “Se a recompensa, os direitos, objectos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor”.
No caso, as vantagens económicas retiradas pelo agente de crime de tráfico de estupefacientes são constituídas, não por tudo o que foi apurado ter recebido dos compradores, mas apenas da parte que, desse valor, constitui efectivo lucro para si.
Ora, nada se tendo provado quanto a esse lucro efectivo - do montante peticionado ou de outro –, este pedido está destinado à total improcedência, sem necessidade de mais considerações”.
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Não se pode concordar com este segmento do acórdão recorrido.
Efetivamente ainda que se entendesse que não poderia ser declarado perdida a favor do Estado todas as quantias que o arguido recebeu dos compradores dos produtos estupefacientes que vendeu, ainda assim, o tribunal recorrido dispunha de matéria factual suficiente, dada como provada, para calcular qual a vantagem líquida obtida, efetuando para tanto a conta da soma do que o arguido tinha recebido e subtraindo esse montante, ao valor que tinha pago por tais produtos.
Entende-se, porém, caber razão ao Ministério Público quando defende que deve ser declarada a favor do Estado a vantagem bruta obtida pelo arguido com a prática do crime de tráfico de estupefacientes pelo qual foi condenado, no valor mínimo de € 12.032,00 [4].
Conforme muito lucidamente se defende no acórdão desta Relação de Guimarães de 23 de janeiro de 2023 [5] “Ao invés do que foi considerado no Acórdão recorrido o que importa é o ganho obtido, não interessando o lucro líquido (vantagem a que se deduziram as despesas inerentes á obtenção da vantagem, ao cometimento do crime)
Não creio que a Lei aceite a interpretação do conceito de vantagem como um valor angariado ilicitamente a que se deduziam as “despesas do crime”.
A venda de estupefacientes é uma actividade ilícita, penalmente censurável, inexistindo justificação para a valoração ou consideração dos meios empregues – despesas inerentes á consumação - para a sua prática. As despesas ocorridas inserem-se na preparação e efectivação do crime, inexistindo qualquer cobertura ou previsão legal que sustente a sua consideração.”.
Na verdade, e salvo o devido respeito pela posição do tribunal a quo, não se compreende minimamente que, no caso particular evidenciado nos autos, em que está em causa a prática, pelo arguido, de um crime p. e p. pelo Artº 21º do Dec.-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, em cujo âmbito, sem margem para dúvidas, se apurou que, mercê da venda de produtos estupefacientes a vários “clientes” ou consumidores, nos termos melhor descritos nos pontos 5) e 6), o arguido “embolsou” a quantia  de € 64.380,00, ainda tivessem que ser apuradas as “despesas” do crime, a fim de serem deduzidas àquele montante, para, então, se condenar o arguido a pagar ao Estado o saldo daí resultante.
Afigurando-se-nos que nem a letra, nem o espírito que subjaz ao instituto da perda de vantagens a que alude o citado Artº 36º, nº 2, do Dec.-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, exige tal exercício, sob pena de, na generalidade dos casos como o ora em análise, ficar totalmente votado ao fracasso este instituto preventivo, o que certamente não esteve presente na mens legislatoris.
Não se compreendendo, pois, que, como na situação em apreço, se puna o crime cometido pelo arguido, e não se decrete a comprovada e objectiva vantagem por ele obtida com a perpretação de tal ilícito, tolerando-se que a mantenha incólume no seu património ou na sua esfera jurídica.
Sendo, ademais, totalmente indiferente, para o efeito, que não se tenha apurado o destino que o arguido deu àquele montante, e designadamente se o mesmo o canalizou total ou parcialmente para gastos pessoais, neles se incluindo os consumos de produtos estupefacientes, seus e/ou da sua companheira, como se hipotisa no acórdão recorrido.
Pois, o que a lei sanciona é a obtenção ilícita da vantagem.
Conceito que, como bem aduz uma vez mais o Exmo. PGA, “(...) não se confunde com o de lucro, este definido como o rendimento residual obtido por uma operação de compra e venda ou de produção depois de pagos os custos.”.
Sendo certo que “A natureza sancionatória do Direito Penal visa combater a vantagem obtida ilicitamente, não salvaguardando qualquer protecção ou consideração a despesas, gastos, investimentos que tenham sido utilizados no processo de cometimento do crime.
Mal se compreenderia que tal ocorresse pois isso significaria a mercantilização da acção penal, com a introdução de variáveis financeiras atenuadoras da responsabilidade penal que a lei, de todo, não admite.”.
Na mesma esteira, o já citado acórdão desta Relação de Guimarães de 5 de março de 2024, onde se considera que “A comercialização de estupefacientes é uma atividade ilícita, penalmente censurável, inexistindo justificação para a consideração das despesas inerentes aos meios empregues para a sua prática e a consecução do seu objetivo último – a obtenção de avultados lucros. As despesas suportadas nos diversos atos de preparação e consumação do crime não podem obter tutela legal mediante a sua dedução à receita obtida, a fim de se apurar o lucro, tal como se estivéssemos perante uma atividade lícita sujeita a tributação fiscal.
Caso assim se não entendesse, estar-se-ia, além do mais, a legitimar condutas também elas ilícitas, como sucede, por exemplo, com o pagamento das despesas de transporte e/ou armazenamento de produtos estupefacientes efetuadas por terceiros.
Enfim, fazer equivaler a vantagem do facto ilícito ao lucro obtido pelo agente após a dedução das despesas que teve com a sua prática defraudaria por completo o espírito enformador do instituto de perda de bens”.
Efetivamente não estamos perante um contrato de compra e venda, regulado pelo Código Civil, em que só merecem tutela jurídica os bens que sejam licitamente transacionáveis.
O arguido ao adquirir os produtos estupefacientes que comprou já está a incorrer na prática do crime, pelo que não há que salvaguardar ou atender ao dinheiro que gastou com essa compra.
No limite, e a não ser assim, então também teria sido de ser abatido não só o montante que ele pagou aos seus fornecedores, como também o preço dos telemóveis, a balança, as duas caixas de mortalha, o moinho e os três frascos fertilizante que teria adquirido e também teria de ser descontado o valor dos produtos estupefacientes que ele tinha adquirido e foram apreendidos, o que manifestamente não é razoável.
Não há assim que atender ao valor líquido, mas sim ao valor bruto, resultante das vendas efetuadas, dadas como provadas, cuja soma ascende a € 12.032,00 e que é assim declarada perdida a favor do Estado, cabendo ao arguido efetuar o pagamento da mesma.
Procede assim o recurso interposto pelo Ministério Público.
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III – Decisão.

Face ao exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e em consequência:

I - Revogam o acórdão recorrido na parte em que julgou improcedente o pedido de perda de vantagens deduzido pelo Ministério Público;
II - Decretam a perda a favor do Estado da vantagem patrimonial obtida pelo arguido AA, com a prática do crime pelo qual foi condenado nos presentes autos, correspondente à quantia global de € 12.032,00 (doze mil e trinta e dois euros), condenando-se o mesmo no pagamento de tal importância ao Estado.
*
Sem tributação.
Notifique.
                          
Guimarães, 9 de abril de 2024.
(Decisão elaborada pelo relator com recurso a meios informáticos e integralmente revista pelos subscritores, que assinam digitalmente).

Os Juízes Desembargadores,
Pedro Freitas Pinto (Relator)
Paulo Almeida Cunha  (1º Adjunto)
Fernando Chaves (2º Adjunto)



[1] “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, 3ª Reimpressão, Coimbra Editora, 2011, págs. 632.
[2] “Sentido e função do instituto da perda de vantagens relacionadas com o crime no confronto com os meios de prevenção de criminalidade reditícia”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal nº 2.
[3] Procº n.º 179/17.2GAMNC, relatado pela Desembargadora Isabel Gaio Ferreira de Castro, publicado como os demais citados in www.dgsi.pt.
[4] Diferentemente do sucedido no processo nº 19/21.8PEBGC, sendo o mesmo o Relator do presente recurso, em que nessa situação, era apenas peticionada pelo Ministério Público a vantagem líquida obtida, como consta do ac. desta Relação de Guimarães de 13 de julho de 2022.
[5] Processo nº 43/20.8GBVRL, relatado pela Desembargador António Teixeira.