Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3621/22.7T8VNF.G1
Relator: JOSÉ ALBERTO MOREIRA DIAS
Descritores: LEGITIMIDADE PROCESSUAL
COMPRA E VENDA DE VEÍCULO AUTOMÓVEL
LIBERDADE DE FORMA
REGISTO AUTOMÓVEL
CESSÃO DE CRÉDITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1- O contrato de compra e venda de veículo automóvel encontra-se submetido ao princípio da liberdade de forma ou da consensualidade, pelo que pode ser celebrado verbalmente ou por escrito, podendo a prova da sua celebração verbal fazer-se por qualquer meio de prova legalmente admissível, incluindo a prova testemunhal.
2- Quando seja celebrado verbalmente, o contrato de compra e venda de veículo automóvel fica concluído mal se forme o mútuo consenso entre vendedor e comprador, operando-se, nesse momento e por efeito da sua celebração, os seus efeitos reais (transferência do direito de propriedade sobre o veículo do vendedor para o comprador) e obrigacionais (constituição do vendedor na obrigação de entregar o veículo ao comprador, e constituição deste na obrigação de pagar ao primeiro o preço de compra do veículo, nas condições que foram acordadas).
3- O contrato de compra a venda de veículo automóvel não se confunde, por isso, com o requerimento para o registo de veículo automóvel, em que, na sequência da celebração verbal daquele contrato, a pedido do comprador, o vendedor confirmou (falsamente) ter vendido o veículo objeto da compra e venda a terceira pessoa (que não é o efetivo e real comprador do mesmo), nem com a fatura que o vendedor emitiu em nome desse terceiro.
4- O registo não tem natureza constitutiva dos direitos que a ele se encontrem sujeitos, constituindo mera presunção ilidível (mediante prova em contrário), de que o direito registado existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.
5- A cessão de créditos é o contrato mediante o qual o credor (cedente) transmite a terceiro (cessionário), independentemente do consentimento do devedor do crédito cedido, a totalidade ou parte desse crédito, o qual emerge de um outro negócio (negócio constitutivo do crédito cedido).
6- O crédito cedido pelo cedente ao cessionário (por via da celebração do contrato de cessão de créditos entre eles celebrado e por efeito dele) é o mesmo que pertencia ao cedente, pelo que o devedor pode opor ao cessionário todas as exceções dilatórias e perentórias que podia opor ao cedente, com ressalva das que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão.
7- Mas o devedor já não pode opor ao cessionário quaisquer vícios de que padeça o contrato de cessão, por não ser parte desse contrato, nem nele ter de consentir e por a celebração do mesmo em nada o prejudicar.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I- RELATÓRIO

AA, com domicílio profissional na Rua ..., ... ..., ..., instaurou ação declarativa de condenação, com processo comum, contra BB e mulher, CC, residentes na Rua ..., ... ..., ..., pedindo que fossem condenados a pagarem-lhe a quantia de 8.964,72 euros, acrescida de juros de mora, desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Para tanto alegou, em síntese, que: em maio de 2016, os Réus compraram à sociedade EMP01..., Sociedade Unipessoal, Lda. o veículo automóvel com a matrícula ..-OX-.., pelo preço de 15.000,00 euros, dos quais apenas liquidaram a quantia 5.000,00 euros; em julho de 2018, tendo a sociedade EMP01...., Lda. uma dívida para com o Autor de 10.000,00 euros, com o conhecimento dos Réus, por acordo verbal, aquela cedeu-lhe o crédito que detinha sobre aqueles, obrigando-se o Réu-marido perante o Autor a pagar-lhe a referida quantia de dez mil euros em 67 prestações mensais, iguais e sucessivas, no valor de 150,00 euros cada uma, e a última no montante de 100,00 euros, ou, em alternativa, em 24 meses, tendo ficado acordado que o pagamento se iniciaria quando a situação do Réu-marido o permitisse; o Réu-marido começou a liquidar as prestações acordadas em 06/10/2020, e pagou-lhe as que se venceram em igual dia dos meses subsequentes, até ../../2021, no montante global de 1.350,00 euros; acontece que, a partir de julho de 2021, os Réus deixaram de pagar as restantes prestações que se venceram, apesar de interpelados, por diversas vezes, para que o fizessem, a última das quais, por carta registada com aviso de receção, rececionada em 14/09/2021; à data da constituição da dívida os Réus eram casados no regime da comunhão de adquiridos e viviam em economia comum e o veículo foi adquirido em benefício do casal, sendo utilizado por ambos.
Os Réus contestaram, defendendo-se por exceção e por impugnação.
Suscitaram a exceção dilatória de ilegitimidade passiva, alegando que o veículo foi vendido, em maio de 2016, pela sociedade EMP01...., Lda. a AA, pelo preço de 15.000,00 euros, tendo este pago integralmente o seu preço, pelo que, na sua perspetiva, não dispõem de legitimidade passiva para a presente ação.
Invocaram a exceção perentória de nulidade do contrato de cessão de créditos que vem alegado pelo Autor, advogando que o crédito pretensamente cedido pela sociedade EMP01...., Lda. emerge de um contrato de mútuo verbal, mediante o qual essa sociedade financiou a aquisição do veículo, contrato esse que é nulo por preterição da formalidade legalmente prescrita para a sua celebração.
Invocaram a falsidade do documento junto aos autos pelo Autor a fls. 7 verso e 8, sustentando que: o primeiro apenas se encontra assinado por ele próprio (cessionário), e não também pela pretensa cedente (a sociedade EMP01...., Lda.), não titulando, por isso, qualquer contrato de cessão de créditos que tivesse sido validamente celebrado; e o segundo corresponde a uma folha de excel, que o Réu-marido assinava quando lhe era entregue a quantia de 150,00 euros, correspondente ao valor que a EMP02..., Lda., sua entidade empregadora, lhe entregava mensalmente “por fora”, para complementar o vencimento mensal daquele, que não declarava à Segurança Social, e quando a coluna nele discriminada como “Em Dívida” se encontrava completamente em branco, encontrando-se apenas escritos, de forma manuscrita, a data e o valor entregue.
Impugnaram a generalidade da facticidade alegada pelo Autor.
Concluíram pedindo que a ação fosse julgada improcedente, por não provada, com as consequências legais.
O Autor respondeu às exceções invocadas, concluindo pela sua improcedência e como na petição inicial.
 Em 07/11/2022, proferiu-se despacho, em que: se fixou o valor da causa em 8.964,72 euros; saneador, em que se conheceu da exceção dilatória de ilegitimidade passiva suscitada pelos Réus, julgando-a improcedente; se apreciaram os requerimentos de prova apresentados pelas partes; e designou-se data para a realização de audiência final.
Realizou-se audiência final, a qual se prolongou ao longo de três sessões.
Em 24/10/2023, proferiu-se sentença, em que se julgou a ação totalmente procedente, condenando-se os Réus no pedido e absolvendo-se as partes do pedido de condenação como litigantes de má-fé, constando dessa sentença a seguinte parte dispositiva:
“Em face do exposto, o Tribunal decide:
Julgar a presente ação totalmente procedente, por provada, e, em consequência, condenar os Réus a pagarem ao Autor a quantia de 8.650,00 € (oito mil, seiscentos e cinquenta euros), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos calculados à taxa legal, contados desde o dia 01/08/2021.
Julgar não verificada qualquer litigância de má fé no comportamento processual das partes.
Custas a cargo dos Réus”.

Inconformados com o decidido, os Réus BB e CC interpuseram recurso, em que formularam as conclusões que se seguem:

1) – Porque pretende o Autor que seja declarado que a viatura que vendeu a terceira pessoa, a favor de quem foi assinada a respetiva declaração de venda e emitida a correspondente fatura, ao invés foi vendida aos RR, concretamente ao Réu marido.
2) – Porque pretende, assim, o Autor pôr em crise o contrato de compra e venda celebrado com terceira pessoa, sendo que esta terceira pessoa nem sequer é demandado nos presentes autos.
3) – Porque se verifica, assim, a ilegitimidade passiva dos RR.
4) – Porque invoca o Autor que, na qualidade de credor da sociedade comercial, na forma unipessoal, EMP01..., Lda. lhe foi cedido o alegado crédito no valor de 10.000,00€, sendo que até foi dado por não provado que a sociedade EMP01..., vendedora do veículo, tivesse a alegada dívida de 10.000,00€ para com o Autor e que este invoca como substrato da alegada cessão de crédito.
5) – Porque o documento que alegadamente titula a suposta cessão creditícia só está assinado pelo alegado cessionário e sem qualquer intervenção do cedente, o que bem evidencia o supra alegado.
6) – Porque, in casu, o Autor, cessionário, não se deteve na caracterização do negócio de base concluído com o cedente; mas, quanto ao crédito cedido, alegou que ele tem origem no pagamento de uma viatura a terceiro por contraponto à celebração de um contrato de crédito/mútuo entre o cedente e os RR no valor de 10.000,00€.
7) – Porque segundo o disposto no artigo 1143º, na redação do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 04.07, sem prejuízo do disposto em lei especial, o contrato de mútuo de valor superior a € 25.000,00 só é válido se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado e o de valor superior a € 2.500 ,00 se o for por documento assinado pelo mutuário.
8) – Porque o artigo 220º, do C. C., comina que a declaração negocial, que não observou a forma legalmente prescrita, é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei, como é o caso dos autos por ausência de qualquer documento assinado por qualquer dos RR e que titule a alegada dívida.
9) – Porque se o contrato a partir do qual se originou o crédito for inválido, o devedor pode invocar a sua invalidade após a cessão.
10) – Porque, no caso dos autos, nunca se poderá verificar qualquer cessão do crédito na medida em que até foi dado por não provado que a sociedade EMP01..., vendedora do veículo, tivesse a alegada dívida de 10.000,00€ para com o Autor e que este invoca como substrato da alegada cessão de crédito.
11) – Porque tanto o adquirente da viatura, como os RR, sempre alegaram e depuseram na confirmação de tal pagamento ter sido efetuado em numerário e na sua integralidade à sociedade vendedora.
11) – Porque tal conclusão é o que resulta dos depoimentos gravados nos ficheiros 20230906152422_6061152_2870592 ao minuto 05.00 a 07.15 e 02,15 (adquirente do veículo) e 20230606152847_6061152_2870592 ao minuto 02.15 a 04,30 (Réu).
12) – Porque a prova testemunhal é livremente apreciada pelo julgador, não menos certo é que sempre haverá que atender a que nem todos têm a mesma serenidade e capacidade de discernimento, impondo-se salientar que as únicas testemunhas inquiridas são os próprios intervenientes e participantes no negócio, verdadeiros interessados no desfecho da lide, pelo que era ao Autor quem competia a prova inequívoca dos factos que alega e, face aos referidos depoimentos não é segura a prova, para além da dúvida, que o veículo tenha sido vendido ao Réu.
13) – Porque o registo de propriedade da viatura foi averbado em nome de terceira pessoa e com base na respetiva declaração de venda que titula o inerente contrato de compra e venda.
14) - Porque devem passar a elencar os factos não provados os consignados na sentença sob os nºs 4 a 6, 8, 14, 15, 17, 18, 21, 22, 23, 24 e 25 e passar a constar dos factos provados os elencados em i, ii e v dos não provados.
15) – Porque toda a prova está documentada nos autos.
16) - Porque a análise crítica de toda a prova impõe conclusão diversa da constante na fundamentação da sentença.
17) – Porque a decisão em apreço viola, por erro de aplicação e de interpretação o disposto nos artºs 289º, 783º e 1143º do Cód. Civil e 516º, 653º, nº 2; 659º e 668º, todos do CPC.
Deve, com o sempre douto e esclarecido suprimento de Vossas Excelências ser provido o presente recurso e, em consequência, a sentença de fls. ser revogada, julgando-se a ação improcedente e os Réus absolvidos do pedido formulado nos autos, como é de Justiça.

O Autor contra-alegou pugnando no sentido de que o recurso fosse julgado improcedente ,,,,

A 1ª Instância admitiu o recurso interposto como sendo de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo, o que não foi alvo de modificação no tribunal
ad quem.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação dos apelantes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
Acresce que, o tribunal ad quem também não pode conhecer de questão nova, isto é, que não tenha sido, ou devesse ser, objeto da decisão sob sindicância, salvo se se tratar de questão que seja do conhecimento oficioso, dado que, sendo os recursos os meios específicos de impugnação de decisões judiciais, mediante o reexame de questões que tenham sido nelas apreciadas, visando obter a anulação da decisão recorrida (quando padeça de vício determinativo da sua nulidade) ou a sua revogação ou alteração (quando padeça de erro de julgamento, seja na vertente de erro de julgamento da matéria de facto e/ou na vertente de erro de julgamento da matéria de direito), nos recursos, salvo a já enunciada exceção, não podem ser versadas questões de natureza adjetivo-processual e/ou substantivo material sobre as quais não tenha recaído, ou devesse recair, a decisão recorrida[1].
No seguimento desta orientação cumpre ao tribunal ad quem apreciar as seguintes questões:
a- Se o despacho saneador proferido em 07/11/2022, que julgou improcedente a exceção dilatória de ilegitimidade passiva suscitada pelos apelantes, padece de erro de direito e se, em consequência, se impõe revogar esse despacho e absolver os apelantes da instância;
b- A improceder a questão que se acaba de enunciar, se a sentença recorrida padece de erro de julgamento da matéria de facto quanto à facticidade que nela foi julgada provada nos pontos 4º, 5º, 6º, 8º, 14º, 15º, 17º, 18º, 21º, 22º, 23º, 24º e 25º e quanto à que foi julgada não provada nos pontos I), II) e V) e se, uma vez revisitada e reponderada a prova produzida, se impõe concluir pela não prova da facticidade julgada provada e pela prova de que foi julgada não provada; e, a propósito, suscita-se a questão prévia de se saber se os apelantes cumpriram com os ónus impugnatórios do julgamento da matéria de facto enunciados no art. 640º, n.ºs 1 e 2, al. a) do CPC, e quais as consequências jurídicas decorrentes do eventual incumprimento de tais ónus;
c- Se na sequência da impugnação, com êxito, do julgamento da matéria de facto operada pelos apelantes, ou, independentemente dele, a decisão de mérito constante da sentença (que julgou a ação procedente e condenou os apelantes a pagarem ao apelado a quantia de 8.650,00 euros, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal desde 01/08/2021) padece de erro de direito e se, em consequência, se impõe revogar essa sentença e absolvê-los do pedido.
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III- DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A 1ª Instância julgou provada a facticidade que se segue com relevância para a decisão a proferir nos autos:
1- O R. marido trabalhou na empresa EMP02..., Lda., da qual é sócio-gerente o Autor, nos períodos compreendidos entre março de 2014 a maio de 2016 e, posteriormente, no período compreendido entre outubro de 2016 a 14 de novembro de 2021, com a categoria profissional de vendedor.
2- Paralelamente, o R., desde 2014, fora do seu horário de trabalho, utilizava, em proveito próprio, a estufa de pintura de automóveis existente nas instalações da empresa EMP01..., Sociedade Unipessoal, Lda., cujo sócio único e gerente é DD, filho do Autor, e, em contrapartida, prestava alguns serviços à referida empresa.
3- No âmbito das referidas relações profissionais criou-se também uma relação de amizade entre os RR. e o A. e DD.
4- Em maio de 2016, a sociedade EMP01...., na pessoa do seu representante legal DD, celebrou um acordo verbal com o 1.º Réu BB, pelo qual aquela se obrigou a entregar ao 1.º Réu o veículo automóvel marca ..., com a matrícula ..-OX-.., contra o pagamento do valor monetário de 15.000€ a efetuar pelo 1.º Réu.
5- Alguns dias depois, a EMP01... entregou o veículo ao 1.º Réu.
6- Atenta a relação de amizade e de confiança existente entre DD e o Réu, a empresa EMP01.... concedeu ao Réu a possibilidade de liquidar o preço em parte através da prestação de serviços à EMP01... e outra parte através de entregas em dinheiro, sempre que tal lhe fosse possível, em prazo não concretamente determinado, mas não inferior a um ano.
7- Desde o momento em que o veículo foi entregue ao 1.º Réu e até à presente data, o veículo passou a ser utilizado indistintamente pelo 1.º Réu, a 2.ª Ré e o pai desta e sogro daquele, AA.
8- Ainda no âmbito do aludido acordo, DD e o 1.º Réu acordaram que o veículo seria registado a favor do sogro do 1.º Réu, AA, e a fatura de venda do mesmo veículo seria emitida também em nome deste AA, devido às dívidas que o 1.º Réu tinha.
9- Em maio de 2016, estavam em curso contra os Réus, enquanto executados, os seguintes processos executivos:
a) Processo n.º 3765/16...., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Instância Central de ..., 2.ª Secção Execução – J1, no valor de 20.274,19 €, cujo exequente é o Banco 1..., S.A., ao abrigo do qual foi penhorado o vencimento auferido pelo 1.º Réu na empresa EMP02...;
b) Processo n.º 1622/16...., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Instância Central de ..., 2.ª Secção Execução – J1, no valor de 12.145,79 €, cujo exequente é o Banco 2..., S.A., ao abrigo da qual foi a empresa EMP02... notificada para penhorar 1/3 do vencimento auferido pelo 1.º Réu;
c) Processo de execução de fiscal n.º ...94, da Autoridade Tributária e Aduaneira, no valor de 1.671,42 €, ao abrigo do qual foi a empresa EMP02... notificada para penhorar parte do vencimento auferido pelo 1.º Réu.
10- Ao abrigo do acordo referido em 4), a sociedade EMP01... emitiu em nome de AA a fatura n.º ...02, no valor de 15.000,00€, datada de 21/09/2016, com vencimento também em 21/09/2016, referente ao veículo automóvel marca ..., com a matrícula ..-OX-...
11- Pelo registo de propriedade n.º ...01, datado de 19/05/2016, foi registada a propriedade do veículo de matrícula ..-OX-.. a favor de AA.
12- Pelo registo de propriedade n.º ...80, datado de 05/09/2016, foi registada a propriedade do veículo de matrícula ..-OX-.. a favor de EE, filha de AA.
13- Pelo registo de propriedade n.º ...89, datado de 18/08/2017, foi registada a propriedade do veículo de matrícula ..-OX-.. a favor de AA.
14- O 1.º Réu pagou à EMP01... a quantia de 5.000,00 € (cinco mil euros), tendo sido uma parte não concretamente determinada através da prestação de serviços à EMP01... e uma outra parte não concretamente determinada através de entregas em numerário.
15- A sociedade EMP01... não emitiu o respetivo recibo, porquanto os RR. não pagaram o valor remanescente de 10.000,00 € (dez mil euros).
16- Em 31/12/2017, a conta-corrente aberta entre a sociedade EMP01... e sociedade EMP02..., Lda. apresentava um saldo devedor de 11.383,36€, a favor da sociedade EMP02..., Lda., o qual ainda se mantinha à data de 31/12/2022.
17- Por acordo verbal, celebrado em ../../2018, a sociedade EMP01.... declarou ceder ao Autor, que o aceitou, o crédito que aquela detinha sobre o 1.º Réu no valor de 10.000,00€, correspondente ao preço em falta relativo à venda do veículo acima identificado.
18- Os Réus tiveram conhecimento de tal acordo e deram o seu consentimento ao mesmo.
19- Em 9 de julho de 2018, o Autor redigiu e assinou um documento particular denominado “Declaração”, de onde consta o seguinte:
“…no dia 9 de julho de 2018, por acordo verbal, assumi o crédito, no valor de 10.000,00€ (dez mil euros), que a EMP01.... Unipessoal, Lda. detinha sobre o meu funcionário, BB, com o NIF ...81, e sua esposa.
No seguimento do acordo referido, esta dívida será paga em prestações mensais, iguais e sucessivas no valor de 150€ e terá início logo após a sua situação financeira permitir ou dentro de 24 meses.”
20- O que foi do conhecimento dos Réus.
21- Em 9 de julho de 2018, entre o A. e o R. marido foi celebrado um acordo verbal de pagamento, pelo qual o R. marido obrigou-se a pagar o valor de 10.000,00 € (dez mil euros) em sessenta e sete prestações mensais, iguais e sucessivas, no valor de 150,00 € (cento e cinquenta euros) cada, sendo a última prestação no valor de 100,00 € (cem euros).
22- O Autor e o R. acordaram, ainda, que o pagamento prestacional teria início quando a situação financeira do Réu o permitisse ou, em alternativa, em 24 meses.
23- O R. liquidou ao A. a primeira prestação em 6 outubro de 2020 e ainda as oito prestações subsequentes nos dias 04/11/2020, 04/12/2020, 05/01/2021, 03/02/2021, 03/03/2021, 05/04/2021, 05/05/2021 e 02/06/2021, o que perfez o valor global de 1.350,00 € (mil trezentos e cinquenta euros).
24- Sempre que o Réu pagou cada uma das prestações acima referidas ao Autor assinou o documento particular denominado “DÍVIDA BB”, na coluna da assinatura e na linha correspondente ao mês da prestação paga, que para o efeito lhe era entregue pelo A. que o elaborou, assinou e datou em 09/07/2018.
25- A partir de julho de 2021 os RR. deixaram de pagar qualquer prestação ao A., e, desde então, nada mais lhe pagaram.
26- Por carta registada com aviso de receção, enviada pelo Autor aos Réus, no dia 13/09/2021, e recebida por estes no dia 14/09/2021, com o assunto “Interpelação para cobrança de dívida”, o Autor comunicou aos Réus, além do mais, “a intenção da resolução extrajudicial da cobrança da dívida no valor de 8.650,00€ (…) que [os Réus] por força do acordo verbal confessaram-se devedores com a obrigação de restituir o referido montante”.
27- Os Réus não responderam a tal missiva.
28- No dia seguinte, em 15/09/2021, o R. marido enviou uma carta à EMP02..., Lda., comunicando, entre o mais, a “vontade de rescindir o contrato de trabalho celebrado com a vossa empresa. (…) sendo que o último dia de vínculo à vossa empresa será a 14 de novembro de 2021. Efetivamente esta decisão fundamenta-se única e exclusivamente no melhoramento da minha situação profissional, providenciando melhores perspetivas de desenvolvimento profissional, pessoal e financeiro”.
29- O contrato de seguro de responsabilidade civil pelos danos a terceiros emergentes da circulação do veículo ..-OX-.., titulado pela apólice n.º ...56, tem como tomador de seguro AA, em nome do qual são emitidos os recibos de pagamento dos respetivos prémios.
30- O referido veículo de matrícula OX foi, no ano de 2017, interveniente num acidente de viação e, por tal via, reparado na empresa EMP01....
31- Na sequência do referido acidente de viação, o aludido AA intentou uma ação judicial condenatória contra a seguradora, uma vez que a mesma não assumiu o sinistro, na qual foi testemunha para além do Réu, também DD.
32- Os RR. são casados entre si desde ../../2001, sem convenção antenupcial.
33- A 2ª Ré tem registado a seu favor, desde ../../2021, o direito de propriedade sobre o veículo automóvel com a matrícula ..-..-EE.
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Por sua vez, a 1ª Instância julgou não provada a facticidade que se segue:

I- Não se provou que tenha sido AA a celebrar o acordo referido em 4) dos factos provados com a sociedade EMP01..., obrigando-se aquele a entregar a esta sociedade a quantia de 15.000€ e esta a entregar-lhe o veículo.
II- Não se provou que AA, em setembro de 2016, tenha pago, em numerário, o montante de 15.000,00€ à sociedade EMP01....
III- Não se provou que, em julho de 2018, a sociedade EMP01... tivesse uma dívida de 10.000,00 € para com o A..
IV- Não se provou que o Réu tenha denunciado o contrato de trabalho com a EMP02..., por entender que o vencimento que lhe estava a ser liquidado não era compatível com o trabalho por si prestado, bem como porque a remuneração total não integrava os respetivos recibos.
V- Não se provou que as despesas referentes ao veículo de matrícula ..-OX-.., designadamente seguro do veículo, IUC e via verde, sejam, desde ../../2016, integral e exclusivamente, suportadas por AA.
VI- Não se provou que os Réus não responderam à carta que lhes foi remetida pelo A. em 13/09/2021, por a terem entendido como mera provocação e tentativa de retaliação por o 1.º Réu ter anunciado e rescindido o contrato de trabalho com a EMP02... e, bem assim, por este ter estado na situação de baixa médica prolongada, data a partir da qual deixou de receber o “complemento salarial”.
VII- Não se provou que os Réus não têm, nem nunca tiveram problemas económicos que os impossibilitassem de deter bens titulados em nome próprio.
- Dos factos relativos ao incidente de falsidade de documento:
VIII- Não se provou que o documento particular denominado “DÍVIDA BB” correspondesse a uma folha de Excel que o R. marido assinava quando lhe era pago mensalmente “por fora” o valor de 150,00€ pela EMP02..., Lda., para complementar o vencimento mensal, montante esse que não era declarado seja à AT, seja à Segurança Social.
IX- Não se provou que quando o 1.º Réu assinou o documento particular denominado “DÍVIDA BB” dele não constassem as expressões “DÍVIDA BB”; “Julho 2018” e “10.000,00€”, nem a assinatura ou rúbrica e a data de 9 de Julho 2018, no canto inferior direito, e, ainda, que a coluna discriminada como “EM DÍVIDA”, se encontrasse em branco, nomeadamente, quanto à expressão “EM DÍVIDA”, encontrando-se apenas escrito de forma manuscrita a data, o valor entregue e a assinatura do 1.º R..
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IV- DA FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

A- Da exceção dilatória de ilegitimidade passiva – do erro de direito que afetará o despacho saneador proferido em 07/11/2022, no segmento em que nele se julgou improcedente aquela exceção
Nas conclusões 1ª, 2ª e 3ª das alegações de recurso os apelantes sustentam que: “Porque pretende o Autor que seja declarado que vendeu a terceira pessoa, a favor de quem foi assinada a respetiva declaração de venda e emitida a correspondente fatura, ao invés foi vendida aos Réus, concretamente ao Réu marido. Porque pretende, assim o Autor pôr em crise o contrato de compra e venda celebrado com terceira pessoa, sendo que, esta terceira pessoa nem sequer é demandada nos presentes autos. Porque se verifica, assim, a ilegitimidade passiva dos Réus”, com o que, salvo melhor opinião, pretendem assacar ao despacho saneador proferido em 07/11/2022, em que a 1ª Instância julgou improcedente a exceção dilatória de ilegitimidade passiva, erro de direito.
Com efeito, tendo os apelantes, na contestação, suscitado, além do mais, a exceção dilatória de ilegitimidade passiva, esta veio a ser julgada improcedente pela 1ª Instância no despacho saneador que prolatou em 07/11/2022, com os argumentos que se seguem: “A ilegitimidade é um pressuposto processual relativa às partes de que depende a eficácia da decisão sobre o mérito da causa que o tribunal venha a proferir e correspondente ao interesse que as partes têm em demandar, enquanto autores, ou em contradizer, enquanto réus, uma determinada ação (cfr. art. 30º, n.º 1 do CPC). O alcance desse interesse de que resulta a legitimidade só pode, pois, aferir-se em concreto, em face da posição que assume cada uma das partes na ação proposta. O n.º 3 do art. 30º do Código de Processo Civil fornece, para efeitos de determinação da legitimidade das partes, um critério subsidiário, a aplicar quando o contrário não resulte de disposição legal, dispondo que: “São titulares do interesse relevante para efeitos de legitimidade os sujeitos da relação controvertida tal como é configurada pelo autor”. No caso em apreço, alega o autor ser titular de um crédito sobre os réus, resultante da aquisição por este de um veículo automóvel, tendo a dívida contraída pelos réus revertido em proveito comum do casal. Assim, partindo da relação jurídica controvertida tal como foi configurada pelo autor na petição inicial, necessariamente se conclui serem ambos os réus parte legítima na ação, por terem efetivo interesse em contradizê-la. A questão de saber se a relação material controvertida ou o dever jurídico dela decorrente existe ou não nos termos alegados pelo autor, importa para efeitos de decisão sobre o mérito da causa e já não para efeitos de determinação da legitimidade processual das partes”. E concluiu, julgando “totalmente improcedente a exceção dilatória de ilegitimidade passiva invocada pelos réus”.
Conforme se extrai do art. 644º, n.º 1, a contrario, do CPC, diversamente do que acontece com as decisões proferidas em 1ª Instância, que ponham termo à causa ou a procedimento cautelar ou incidente processado autonomamente (cfr. al. a)) e de despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, decida do mérito da causa ou absolva da instância o réu ou algum dos réus quanto a algum ou alguns dos pedidos (cfr. al. b)), em que  tais decisões são imediatamente recorríveis, tendo de ser atacadas, de imediato, mal sejam notificadas à parte vencida, mediante interposição de recurso, sob pena de transitarem em julgado, o despacho saneador em que se julgue improcedente uma exceção dilatória, nomeadamente, a exceção dilatória de ilegitimidade passiva, como é o caso do proferido em 07/11/2011, não é imediatamente recorrível, mas apenas é recorrível diferidamente, conjuntamente com o recurso que venha a ser interposto das decisões previstas no n.º 1 do art. 644º (cfr. n.º 3 da mesma disposição legal).
Por isso, o segmento do despacho saneador proferido em 07/11/2022, em que se conheceu da exceção dilatória de ilegitimidade passiva suscitada pelos apelantes na contestação, julgando-a improcedente, é recorrível conjuntamente com a sentença que foi proferida no âmbito da presente ação.
Posto isto, nas alegações de recurso, os apelantes não referem expressamente pretenderem impugnar o despacho saneador proferido em 07/11/2022, no segmento em que se julgou improcedente a exceção dilatória de ilegitimidade passiva que tinham suscitado e, inclusivamente, contraditoriamente com esse intento, concluíram as suas alegações de recurso pedindo que o tribunal ad quem julgue provido o recurso e, em consequência, revogue a sentença recorrida e os absolva dos pedidos. Ora, nos termos do disposto nos arts. 576º, n.ºs 1 e 2 e 577º, al. e) do CPC, consubstanciando a ilegitimidade (ativa e/ou passiva) das partes, para a relação jurídica material controvertida delineada pelo autor (apelado) na petição inicial, uma exceção dilatória, que obsta ao conhecimento do mérito da causa, determinando a absolvição dos réus da instância, caso os apelantes pretendam efetivamente interpor recurso daquele saneador em que se conheceu da mencionada exceção dilatória de ilegitimidade passiva, julgando-a improcedente, e o assim decidido padeça de erro de direito, a consequência da procedência do recurso, com a consequente procedência da exceção dilatória de ilegitimidade passiva, não é a absolvição dos mesmos do pedido, mas antes da instância.
Acontece que, apesar das incongruências que se acabam de enunciar de que padecem as alegações de recurso dos apelantes, o certo é que, atento o teor das conclusões de recurso que formularam sob os pontos 1º, 2º e 3º, o único sentido interpretativo que é possível extrair daquelas é no sentido de que pretendem colocar em crise, imputando-lhe erro de direito, a decisão da 1ª Instância que julgou improcedente a exceção dilatória de ilegitimidade passiva, reafirmando, aliás, na dita conclusão 3ª, verificar-se “a ilegitimidade passiva dos Réus”. Ou seja, no âmbito do presente recurso, os apelantes pretendem não só impugnar a sentença recorrida, proferida em 24/10/2023, que julgou a ação procedente e, em consequência, os condenou no pedido, como também o despacho saneador proferido em 07/11/2022, no segmento em que nele se julgou improcedente a identificada exceção dilatória de ilegitimidade passiva que tinham suscitada na contestação.
Daí que, salvo melhor opinião, o erro de direito que os apelantes assacam ao decidido pela 1ª Instância quanto à identificada exceção é questão que faz parte do objeto do presente recurso de apelação.
Acresce dizer que a interpretação que se acaba de enunciar quanto às identificadas conclusões de recurso, foi também a interpretação que foi feita pelo apelado quanto às mesmas, conforme se extrai da leitura das contra-alegações de recurso que apresentou. Assim, da circunstância dos apelantes não serem expressos, nas alegações de recurso, em precisar pretenderem também impugnar o despacho saneador de 07/11/2022, no segmento em que nele se julgou improcedente a identificada exceção dilatória de ilegitimidade passiva, o conhecimento do erro de direito que assacam ao decidido pela 1ª Instância quanto a essa concreta exceção pelo tribunal de recurso não implica qualquer violação ou entorse ao princípio do contraditório que assiste ao apelado.
 Decorre do excurso antecedente que, não só não existe qualquer obstáculo processual a que se conheça do erro de direito que os apelantes assacam (implicitamente) ao despacho saneador proferido em 07/11/2022, em que se julgou improcedente a exceção dilatória de ilegitimidade passiva, nomeadamente, por via do princípio do contraditório que assiste ao apelado, como, perante o teor das conclusões 1ª, 2ª e 3ª das alegações de recurso que apresentaram, se impõe concluir que os mesmos dirigiram também o presente recurso à mencionada decisão, à qual imputam erro de direito. Logo, essa concreta questão faz parte do objeto do presente recurso de apelação, impondo-se que o tribunal ad quem dela conheça, sob pena de incorrer em nulidade, por omissão de pronúncia, nos termos da al. d), primeira parte, do n.º 1 do art. 615º do CPC.
Posto isto, configurando os pressupostos processuais “os elementos de cuja verificação depende o dever de o juiz proferir decisão sobre o pedido formulado, concedendo ou indeferindo a providência requerida”, tratando-se das “condições mínimas consideradas indispensáveis para, à partida, garantir uma decisão idónea e uma decisão útil da causa”, de modo que, “não se verificando algum desses requisitos, como a legitimidade das partes, a capacidade judiciária de uma delas ou de ambas, etc., o juiz terá, em princípio, que abster-se de apreciar a procedência ou improcedência do pedido, por falta de um pressuposto essencial para o efeito”[2], proferindo uma decisão puramente processual, de absolvição dos réus da instância ou remetendo o processo para outro tribunal (art. 576º, n.º 2 do CPC), a apreciação dos pressupostos processuais terá, em princípio, de ser feita de acordo com a relação jurídica material controvertida delineada subjetiva (quanto aos sujeitos) e objetivamente (quanto ao pedido e à causa de pedir) pelo autor na petição inicial.
Um dos pressupostos processuais é a legitimidade das partes (art. 577º, al. e) do CPC), o qual se encontra regulado nos arts. 30º e segs. do CPC.
Nos termos do art. 30º, n.º 1 do CPC: “O autor é parte legítima quando tem interesse direito em demandar; e o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer”; adiantando o n.º 2 do mesmo preceito que: “O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha”; e o n.º 3 que: “Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”.
Mediante o pressuposto processual da legitimidade das partes exige-se, para que o juiz possa conhecer do mérito da causa que foi submetido pelo autor à sua apreciação e decisão, que entre as partes que figuram na causa e o objeto desta (pedido e a causa de pedir que nela foram, respetivamente, delineados e formulados pelo autor na petição inicial) interceda uma determinada relação, que permita concluir que quem figura nela como autor e como réu são as pessoas que têm interesse direto em discutirem esse objeto, por serem as partes diretamente interessadas nessa discussão; e que, por isso, são as “partes exatas” dessa concreta relação jurídica material controvertida que o autor descreveu na petição inicial, submetendo-a à apreciação e decisão do tribunal.
“Ser parte exata no processo”, ou parte legítima, significa que “na ação instaurada tem de figurar como autor quem tem o poder de dirigir a pretensão deduzida em juízo, e como réu quem tem o poder de dirigir a defesa contra essa pretensão. A parte terá legitimidade como autor, se for ela quem juridicamente pode fazer valer a pretensão em face do demandado, admitindo que a pretensão exista; e terá legitimidade como réu, se for ela a pessoa que juridicamente pode opor-se à procedência da pretensão, por ser ela a pessoa cuja esfera jurídica é diretamente atingida pela providência requerida. Se assim não suceder, a decisão que o tribunal viesse a proferir sobre o mérito da ação, não poderia surtir o seu efeito útil, visto não puder vincular os verdadeiros sujeitos da relação controvertida ausentes da lide”[3].
Pelo pressuposto processual da legitimidade exige-se, portanto, que entre quem figura como autor e como réu na ação instaurada pelo autor e o objeto dessa concreta ação (pedido e causa de pedir) por ele delineado na petição inicial interceda uma certa relação, de modo a que se possa afirmar que os sujeitos que nela figuram como autor e como réu são as partes certas dessa concreta e específica relação jurídica[4], por serem quem tem interesse direto em, respetivamente, demandar e contradizer. O pressuposto processual da legitimidade exprime-se precisamente pela relação que, segundo a lei processual civil, tem de existir entre quem figura no processo como autor e como réu e o objeto desse processo, por o autor, atento o pedido e a causa de pedir que alegou no articulado inicial/base da ação, no pressuposto que virá a fazer prova desses factos, ser o titular do direito ou do interesse legalmente tutelado de que se arroga titular, alegadamente violado pela pessoa que demanda (réu) e de onde faz derivar o pedido que contra este deduz.
A ausência dessa relação ou interesse direto entre o objeto da ação e quem nela figura como autor e como réu impede o juiz de entrar na apreciação do mérito da relação jurídica material controvertida que lhe foi submetida a apreciação e decisão, conhecendo do fundo desta, estatuindo sobre os bens discutidos no processo, dirimindo a concreta controvérsia que opõe o autor ao réu, reconhecendo-lhe (ou não) o direito ou interesse legalmente tutelado a que se arroga titular, que emerge da facticidade integrativa da causa de pedir que elegeu e de onde faz derivar a pretensão de tutela judiciária (pedido) que deduz contra o último.
Dito por outras palavras, tal como no campo do direito material, isto é, em sede de legitimidade substantiva, se impõe aferir da titularidade dos interesses em jogo - isto é, se o autor é o  titular efetivo do direito ou do interesse legalmente tutelado a que se arroga titular e que sustenta ter sido violado pela pessoa por si demanda (réu) e se essa violação lhe confere (ou não) efetivamente a pretensão de tutela judiciária que pretende que o tribunal lhe reconheça contra o último (pedido), o que se afere pela subsunção dos factos essenciais constitutivos da causa de pedir que foram alegados pelo autor na petição inicial e dos integrativos das exceções que foram alegados pelo réu na contestação e, bem assim, dos integrativos das contra exceções que foram alegados pelo autor na réplica, e, na ausência desta, no início da audiência prévia, ou não tendo havido lugar a esta, no início da audiência final (arts. 5º, n.º 1, 552º, n.º 1, al. d), 572º, al. c), 584º, n.º 1, 587º, n.º 2 e 4º, n.º 4 do CPC) e que se vieram efetivamente a provar, mas também dos factos complementares, instrumentais e notórios que se vieram a provar nas condições enunciadas no n.º 2 do art. 5º do CPC, ao direito substantivo que lhes seja aplicável -, no âmbito do pressuposto processual da legitimidade das partes impõe-se verificar se na ação instaurada pelo autor estão presentes «as partes certas» da relação jurídica material controvertida, para que seja consentido ao tribunal entrar no conhecimento do fundo dessa relação jurídica.
Essa apreciação, como dito, nos termos do n.º 3 do art. 30º do CPC, na falta de indicação da lei em contrário, deverá ser feita de acordo com a relação jurídica material controvertida delineada pelo autor na petição inicial, o que se mostra consentâneo com a circunstância de se estar no âmbito da apreciação de um pressuposto processual, onde, consequentemente, se visa apurar se estão (ou não) recolhidas as condições mínimas consideradas indispensáveis para que o tribunal possa entrar na apreciação do mérito do conflito que opõe o autor à pessoa por  ele demandada (réu). Esse conflito assenta numa determinada causa de pedir (fundamentos de facto e de direito) que o autor alegou na petição inicial e que, na sua perspetiva, lhe confere determinado direito ou interesse legalmente tutelado, que sustenta ter sido violado pelo réu, e que, na sua perspetiva, lhe confere o direito a que o tribunal lhe reconheça a pretensão (pedido) que formula contra ele.
Daí que se compreenda que a apreciação desse concreto pressuposto processual tenha de ser aferido, salvo disposição da lei em contrário, de acordo com a causa de pedir delineada pelo autor na petição inicial e por referência à pretensão de tutela judiciária (pedido) que nela deduz contra o réu; e reclama que se atenda à facticidade por ele alegada como sendo constitutiva da causa de pedir que alegou - e que, na sua perspetiva, lhe confere o direito ou interesse legalmente tutelado a que se arroga titular, que sustenta ter sido violado pela pessoa que demanda (réu) e de cuja violação faz derivar o pedido - e se indague se essa facticidade, a vir a ser provada e quando subsumida ao direito substantivo que lhe seja aplicável, é apta (ou não) a determinar a procedência da ação.
O autor deterá legitimidade ativa quando, atenta essa relação jurídica material controvertida que delineou na petição, atento o pedido e a causa de pedir que nela alegou e deduziu, respetivamente, tenha “interesse direto em demandar”, isto é, quando, no pressuposto de que se irão provar todos os factos essenciais integrativos da causa de pedir que alegou e de onde faz derivar o pedido, quando submetidos esses factos ao direito substantivo que lhes sejam abstratamente aplicáveis (isto é, independentemente desses factos virem, ou não, a ser provados e das exceções que venham a ser alegadas pelo réu na contestação ou das contra exceções que venham a ser opostos àquelas exceções), esses factos essenciais alegados na petição inicial sejam aptos a conferir-lhe o direito ou o interesse legalmente protegido a que se arroga titular, pretensamente violados pela pessoa por si demanda (réu), e a obter a condenação desta na pretensão (pedido) que pretende lhe seja reconhecida pelo tribunal. Por sua vez, o réu deterá legitimidade passiva quando, atenta a causa de pedir eleita pelo autor na petição inicial e o pedido que nela formulou contra o mesmo, no pressuposto que se irá fazer prova dos factos essenciais integrativos dessa causa de pedir, uma vez submetidos (em abstrato) esses factos essenciais ao direito substantivo que lhe(s) seja(m) aplicável(is), os mesmos sejam aptos a determinar a procedência da ação, com a consequente condenação deste no pedido.
Quando tal suceda, o autor tem interesse direto em demandar, na medida em que os factos essenciais integrativos da causa de pedir que foram por si alegados na petição inicial e de onde faz derivar o pedido que aí formulou contra o réu são aptos (caso sejam provados) a determinar a procedência da ação, com a consequente condenação do réu no pedido, do que resultará para o mesmo uma utilidade (o reconhecimento do direito ou do interesse legalmente tutelado de que se arroga titular, pretensamente violados pelo réu, com a condenação deste no pedido), com o inerente prejuízo do réu, o qual, por isso, tem interesse direto em contradizer.
Enfatize-se que, de acordo com o n.º 1 do art. 30º, para que o pressuposto processual da legitimidade ativa ou passiva se verifique, não basta que, em função da relação jurídica material controvertida delineada pelo autor na petição inicial, exista da parte de quem figura no processo como autor e como réu um qualquer interesse, ainda que jurídico, respetivamente, na procedência ou improcedência da ação, mas é imprescindível que tenham um interesse jurídico direto em demandar e em contradizer.
Não basta, assim, à afirmação do pressuposto processual da legitimidade que, em função da relação jurídica delineada pelo autor na petição inicial, as partes tenham um interesse moral, científico ou afetivo em demandar ou contradizer, nem que o interesse jurídico que eventualmente tenham em discutir essa concreta relação jurídica desenhada na petição inicial seja meramente indireto, reflexo ou derivado.
Conforme ponderam Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, o promitente comprador não tem legitimidade ativa para requerer a declaração judicial de validade do contrato pelo qual o promitente vendedor adquiriu a coisa que lhe prometeu vender, embora tenha um interesse indireto na manutenção do contrato. Também o sublocatário, pela mesma ordem de razões, carece de legitimidade passiva para intervir como réu na ação de despejo intentada pelo senhorio contra o locatário, apesar de ser diretamente prejudicado com a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre senhorio e locador[5].
Decorre do que se vem dizendo que, mediante a consagração do n.º 3 do art. 30º CPC, o legislador pôs termo à discussão clássica entre Alberto dos Reis e Barbosa de Magalhães, optando pela tese deste último autor, ao estabelecer que, ao apuramento da legitimidade, enquanto exceção dilatória, apenas interessa, por regra, a relação jurídica material controvertida desenhada pelo autor na petição inicial, independentemente da prova dos factos que a integram[6].
Assente nas premissas que se acabam de enunciar, o apelado instaurou a presente ação pedindo a condenação dos apelantes a pagarem-lhe a quantia de 8.964,72 euros, acrescida de juros de mora, desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Para tanto, alegou (nisto se consubstanciado a causa de pedir que elegeu, constitutiva do direito de crédito a que se arroga titular perante os apelantes e em cujo pagamento pretende vê-los condenados): a celebração, em maio de 2016, de um contrato de compra e venda entre a sociedade EMP01...., Lda. e os apelantes, mediante o qual a primeira lhes vendeu um veículo automóvel, pelo preço de 15.000,00 euros, dos quais apenas pagaram a quantia 5.000,00 euros (cfr. arts. 1º a 5º da p.i.); a celebração, em julho de 2018, entre a sociedade EMP01...., Lda. e o apelado de um contrato de cessão de crédito, mediante o qual a primeira, com o conhecimento e o consentimento dos apelantes, cedeu-lhe o crédito de 10.000,00 euros (correspondente ao remanescente do preço de compra do veículo automóvel, que alegadamente permanecia então em dívida – cfr. arts. 6º a 8º da p.i.); a celebração entre o apelado e o apelante marido de um acordo verbal, mediante o qual o último se obrigou a liquidar-lhe a dita quantia de 10.000,00 euros em sessenta e sete prestações mensais, iguais e sucessivas, no valor de 150,00 euros cada uma, sendo a última prestação no valor de 100,00 euros, ou, em alternativa, em 24 meses, com início logo que a situação financeira do apelante-marido o permitisse (cfr. arts. 10º e 11º da p.i.); o incumprimento por parte do apelante marido desse acordo de pagamento prestacional, ao ter iniciado o pagamento das prestações em 6 de outubro de 2020, e liquidando as que se venceram até ../../2021, mas não pagando as restantes a que se vinculou e que se venceram a partir de julho de 2021 (arts. 12º a 16º da p.i.); e, finalmente, a responsabilidade de ambos os apelantes pelo pagamento do preço de compra do veículo automóvel que alegadamente ainda permanece em dívida, decorrente do veículo ter sido comprado por ambos, quando eram casados no regime da comunhão de adquiridos e quando o adquiriram para uso comum do casal (arts. 22º a 24º da p.i.).
Ora, aferindo-se a exceção dilatória da ilegitimidade passiva, na falta de indicação da lei em contrário (como é o caso dos autos, já que não existe norma legal que determine solução jurídica diversa da prevista no n.º 3 do art. 30º do CPC para se aferir, no caso, desse pressuposto processual), pela relação jurídica material controvertida tal como é delineada, subjetiva e objetivamente, pelo autor na petição inicial, é indiscutível que, a vir o apelado a fazer prova da facticidade que alegou naquele articulado inicial como constitutiva da causa de pedir que elegeu e em que alicerçou o pedido condenatório dos apelantes que aí formulou, esses factos, quando submetidos (em abstrato) à lei substantiva que lhes é aplicável, são aptos a determinar a procedência da presente ação, com a consequente condenação dos apelantes no pedido.
 Daí que os apelantes disponham de interesse direto em contradizer a presente ação e, por isso, disponham de legitimidade passiva para a mesma, pelo que, bem andou a 1ª Instância em julgar a exceção dilatória de ilegitimidade passiva por eles suscitada improcedente no despacho saneador de 07/11/2022, o qual, consequentemente, não padece de nenhum dos erros de direito que lhe assacam.
Note-se que o erro de direito que os apelantes assacam ao assim decidido assenta na circunstância de, tal como já tinham feito na contestação, nas alegações de recurso terem olvidado ou desconsiderado que a relação jurídica controvertida a considerar para efeitos de aferição do pressuposto processual de legitimidade das partes (exceção dilatória) ser, única e exclusivamente, a que foi alegada pelo apelado (autor) na petição inicial, e não a que os próprios alegaram na contestação como sendo a correspondente aos factos, ontológica e efetivamente, ocorridos.
Na verdade, contrariamente ao que foi alegado na contestação, no que os apelantes insistem nas suas alegações de recurso (apesar do julgamento de facto já se encontrar realizado na sentença recorrida, onde a 1ª Instância – bem ou mal - se mal, tal contende com o mérito da causa, mais concretamente, com erro de julgamento da matéria de facto -, julgou como provada, no essencial, a versão dos factos que foi alegada pelo apelado na petição inicial), o apelado, naquele articulado inicial não alegou que o contrato de compra e venda, tendo por objeto o veículo automóvel, tivesse sido celebrado entre a sociedade EMP01...., Lda. e AA, mas sim que o dito contrato foi celebrado, em ../../2016, entre a sociedade EMP01...., Lda. e os próprios os apelantes – cfr. art. 1º da p.i. -, mediante o qual lhes transmitiu a propriedade sobre o referido veículo, pelo preço de 15.000,00 euros, dos quais apenas pagaram 5.000,00 euros, ficando de lhe pagar os restantes 10.000,00 euros em momento posterior – cfr. pontos 2º, 4º e 5º da p.i..
É certo que, na petição inicial, apesar de alegar que o contrato de compra e venda foi celebrado entre os apelantes (réus), enquanto compradores, e a sociedade EMP01...., Lda., enquanto vendedora, o apelado alegou que, na sequência da celebração desse contrato, o veículo “ficou registado em nome de AA, pai da Ré-mulher, CC, pois os Réus tinham diversas dívidas, motivo pelo qual não registaram a propriedade do referido veículo no seu nome” (cfr. arts. 2º e 3º da p.i.).
Contudo, estando o contrato de compra e venda de veículo automóvel, conforme infra, em sede de direito, melhor se demonstrará, submetido ao princípio da liberdade de forma, podendo esse concreto contrato, por conseguinte, ser celebrado verbalmente entre comprador e vendedor e operando os seus efeitos reais e obrigacionais, previstos no art. 879º do CC, no caso, mediante a mera celebração do contrato de compra e venda e, como efeito dele, visando o apelado, mediante a instauração da presente ação, obter a condenação dos apelantes a pagar-lhe o preço de venda daquele veículo (que alegadamente ainda permanece em dívida), ou seja, exercer um dos direitos obrigacionais emergentes do contrato de compra e venda do veículo automóvel (e não obter a declaração de nulidade daquele contrato, nomeadamente, por simulação), direito de crédito esse que alega ter-lhe sido cedido pela sociedade vendedora, os factos que foram por ele alegados na petição inicial, caso venham a ser provados, quando submetido às normas jurídicas que lhe são aplicáveis (ao direito substantivo), são aptos a determinar a procedência do pedido, determinando a sua legitimidade passiva para a ação.
Decorre do exposto que, carecendo a exceção dilatória de ilegitimidade apenas de ser aferida pela relação jurídica material controvertida tal como vem delineada, subjetiva e objetivamente, na petição inicial, tendo em consideração essa relação jurídica que foi desenhada pelo apelado nesse articulado inicial, a qual é apta, em termos abstratos (independentemente dos factos que alegou virem, ou não  a ser provados – o que contende com o mérito da causa, isto é, com a legitimidade substantiva), de suportar/alicerçar o pedido condenatório que formulou contra os apelados, sem mais, por desnecessárias considerações, improcede este fundamento de recurso;  e, em consequência, confirma-se o despacho saneador de 07/11/2022, que julgou improcedente a exceção dilatória de ilegitimidade passiva suscitada pelos apelantes na contestação.
 
B- Da impugnação do julgamento da matéria de facto – (in)cumprimento dos ónus impugnatórios.

Os apelantes impugnam o julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância quanto à facticidade que julgou provada nos pontos 4º, 5º, 6º, 8º, 14º, 15º, 17º, 18º, 21º, 22º, 23º, 24º e 25º e, bem assim, quanto à julgada não provada nos pontos I), II) e V); e pretendem que, uma vez revisitada e reponderada a prova produzida, se impõe concluir pela não prova da facticidade julgada provada e pela prova de que foi julgada não provada. A propósito do que, suscita-se a questão prévia de se saber se os mesmos cumpriram com os ónus impugnatórios do julgamento da matéria de facto previstos no art. 640º, n.ºs 1 e 2, al. a) do CPC, e quais as consequências jurídicas que decorrem do eventual incumprimento de tais ónus.
Com efeito, apesar do apelado não ter suscitado a questão do eventual incumprimento pelos apelantes do ónus impugnatórios do julgamento da matéria de facto, trata-se de questão que é do conhecimento oficioso do tribunal, por não ser consentido ao tribunal da Relação entrar na reapreciação do julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância, e que os apelantes impugnam, quando ocorra o incumprimento desses ónus impugnatórios por parte destes.
A propósito desta concreta questão, cumpre enfatizar que, sequência das revisões operadas ao CPC pelos Decretos-Leis n.ºs 39/95, de 15/02 e 329-A/95, de 12/12, o legislador introduziu o registo da audiência final, com a gravação integral da prova produzida, e conferiu às partes o duplo grau de jurisdição em sede de julgamento da matéria de facto, de modo que a alteração da matéria de facto, que no regime anterior era excecional, passou a ser uma função normal da Relação.
Com a introdução desse novo regime, foi propósito do legislador que o Tribunal da Relação realize um novo julgamento quanto à matéria de facto impugnada pelo recorrente submetida ao princípio da livre apreciação da prova, assegurando um efetivo duplo grau de jurisdição[7], devendo, nessa operação, proceder à efetiva reapreciação da prova produzida, considerando os meios de prova indicados no recurso, assim como, ao abrigo do princípio do inquisitório, outros que entenda pertinentes, tudo da mesma forma como faz o juiz da 1ª instância, embora, nessa tarefa, esteja naturalmente limitado pelos princípios da imediação e da oralidade.
Nesse novo julgamento, como verdadeiro tribunal de substituição que é, a Relação aprecia livremente as provas produzidas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto impugnado, exceto no que respeite a factos para cuja prova a lei exija formalidades especiais, ou que só possam ser provados por documentos, ou que estejam plenamente provados por documento, acordo ou confissão (art. 607º, n.º 5 do Cód. Proc. Civil) e que, por isso, estejam submetidos a prova tarifada, a qual não deixa qualquer margem de subjetivismo ao julgador quanto ao sentido da decisão de facto a proferir quanto aos mesmos.
Já quanto aos factos submetidos ao princípio da livre apreciação da prova cujo julgamento de facto venha impugnado pelo recorrente, que é o princípio regra vigente no âmbito do processo civil nacional, a Relação está obrigada a realizar um novo julgamento, em que deve ordenar, mesmo oficiosamente, a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento (art. 662º, n.º 2, al. a)); e, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, deve determinar a produção de novos meios de prova (art. 662º, n.º 2, al. b)), o que evidencia que esta tem autonomia decisória no novo julgamento de facto que terá de realizar.
Deste modo, quanto à matéria de facto que seja impugnada pelo recorrente e que se encontre submetida ao princípio da livre apreciação, a Relação não está condicionada pela apreciação e fundamentação do tribunal recorrido, uma vez que o objeto da apreciação em 2ª instância é a prova produzida, tal como na 1ª instância, e não a apreciação que esta fez dessa mesma prova, podendo, na formação da sua convicção autónoma, recorrer a presunções judiciais ou naturais nos mesmos termos em que o faz o juiz da 1ª instância[8].
Acontece que, não tendo sido propósito do legislador que o julgamento de facto a realizar pela Relação se transformasse na repetição do antes efetuado pela 1ª Instância, uma vez que, conforme se escreve no Preâmbulo do D.L. n.º 329-A/95, de 12/12, a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de impugnação do julgamento da matéria de facto “nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência”, mas apenas “detetar e corrigir pontuais, concretos e seguramente excecionais erros de julgamento”, e com vista a evitar a interposição de recursos de pendor genérico, aquele rodeou a impugnação do julgamento da matéria de facto de uma série de ónus que terão de ser cumpridos pelo recorrente, sob pena de se impor a rejeição do recurso quanto ao julgamento da matéria de facto.
É assim que o legislador optou “por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de factos controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente”, pelo que se mantém o entendimento de que, como tribunal de 2ª Instância, a Relação deverá ter competência residual em sede de reponderação ou reapreciação da matéria de facto[9], estando subtraída ao seu campo de cognição a matéria de facto fixada pelo tribunal a quo que não seja alvo de impugnação.
Depois, tal como se impõe ao juiz a quo a obrigação de fundamentar as suas decisões quanto ao julgamento da matéria de facto que realizou, também é imposto ao recorrente, como correlativo dos princípios autorresponsabilidade, da cooperação, da lealdade e da boa-fé processuais, a obrigação de fundamentar o recurso, demonstrando (justificando) o desacerto em que incorreu o tribunal a quo ao decidir a matéria de facto impugnada em determinado sentido, quando, perante a prova produzida, se impunha decisão diversa, e devendo no cumprimento desses ónus, indicar, não só a matéria de facto que impugna, como a concreta solução que, na sua perspetiva, se impunha que tivesse sido tomada quanto a essa concreta facticidade, bem como os concretos meios de prova que ancoram esse julgamento diverso que postula, com a respetiva análise crítica, isto é, com a indicação do porquê dessa prova por si indicada não consentir o julgamento de facto realizado pelo tribunal recorrido e antes impor o que por ele vem propugnado (n.º 1 do art. 662º do CPC).
 Dito por outras palavras, “recai sobre o apelante o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, ónus esse que atua numa dupla vertente: cabe-lhe rebater, de forma suficiente e explícita, a apreciação crítica da prova feita no tribunal a quo e tentar demonstrar que tal prova inculca outra versão dos factos que atinge o patamar da probabilidade prevalecente. Deve o recorrente aduzir argumentos no sentido de infirmar diretamente os termos do raciocínio probatório adotado pelo tribunal a quo, evidenciando que o mesmo é injustificado e consubstancia um exercício incorreto da hierarquização dos parâmetros de credibilização dos meios de prova produzidos, ou seja, que é inconsistente”[10].
Com efeito, “à Relação não é exigido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos à livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio foram valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como se se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar em primeiro lugar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão de facto, indicou nas respetivas alegações que servem para delimitar o objeto do recurso”, conforme o determina o princípio do dispositivo[11], e como decorrência deste, mas também do contraditório, terá de indicar qual a concreta decisão fáctica que se impõe extrair da prova produzida em relação à matéria de facto que impugna; as concretas provas que alicerçam esse julgamento diverso que propugna; e as concretas razões pelas quais essa prova em que funda a sua impugnação afasta os fundamentos probatórios invocados pelo tribunal a quo para motivar o julgamento de facto que realizou, mas antes impõe o julgamento de facto que propugna.
Deste modo é que se compreende que, no art. 640º, n.º 1 do CPC, se estabeleça que: “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas” (sublinhado nosso).
Depois, caso os meios probatórios invocados como fundamento de erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (al. a), do n.º 2 do art. 640º).
Precise-se que cumprindo a exigência de conclusões nas alegações de recurso a missão essencial de delimitação do objeto do recurso, fixando o âmbito de cognição do tribunal ad quem (cfr. n.º 4 do art. 635º), é entendimento jurisprudencial uniforme que, nas conclusões, o recorrente tem de delimitar o objeto da impugnação de forma rigorosa, indicando os concretos pontos da matéria de facto que impugna. E era entendimento de uma parte da jurisprudência do STJ que, nas conclusões, o recorrente teria também de indicar a concreta resposta que, na sua perspetiva, deve ser dada à matéria de facto que impugna[12].
Já quanto aos demais ónus impugnatórios do julgamento da matéria de facto, estes, porque não têm uma função delimitadora do objeto do recurso, mas se destinam a fundamentar o último, não têm de constar das conclusões, mas sim das motivações.
Em suma, à luz deste regime, seguindo a lição de Abrantes Geraldes[13], sempre que o recurso de apelação envolva matéria de facto, terá o recorrente: a) em quaisquer circunstâncias indicar sempre os concretos factos que considere incorretamente julgados, com a enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; b) especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; c) relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos; (…); e) o recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus da alegação, por forma a obviar à interposição de recurso de pendor genérico ou inconsequente.
O cumprimento dos referidos ónus, conforme adverte o mesmo autor, tem a justificá-lo a enorme pressão, geradora da correspondente responsabilidade de quem, ao longo de décadas, pugnou pela modificação do regime da impugnação da decisão da matéria de facto e se ampliasse os poderes da Relação, a pretexto dos erros de julgamento que o sistema anterior não permitia corrigir; a consideração que a reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida; a ponderação de que quem não se conforma com a decisão da matéria de facto realizada pelo tribunal de 1ª instância e se dirige a um tribunal superior, que nem sequer intermediou a produção da prova, reclamando a modificação do decidido, terá de fundamentar e justificar essa sua irresignação, sendo-lhe, consequentemente, imposto uma maior exigência na impugnação da matéria de facto, mediante a observância de regras muito precisas, sem possibilidade de paliativos, sob pena de rejeição da sua pretensão; e, finalmente, o princípio do contraditório, habilitando a parte contrária de todos os elementos para organizar, em sede de contra-alegações, a sua defesa.
A apreciação do cumprimento das exigências legalmente prescritas em sede de impugnação do julgamento da matéria de facto deve ser feita à luz de um “critério de rigor” como decorrência dos já enunciados princípios de autorresponsabilização, da cooperação, da lealdade e da boa fé processuais e salvaguarda cabal do princípio do contraditório que assiste ao recorrido, sob pena da impugnação da decisão da matéria de facto se transformar numa “mera manifestação de inconsequente inconformismo”[14].
Como consequência, impõe-se a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto quando ocorra: “a) falta de conclusões sobre a impugnação da matéria de facto (art. 635º, n.º 4 e 6411º, n.º 2, al. b) do CPC); b) falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640º, n.º 1, al. a) do CPC); c) falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.); d) falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda; e e) falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido a cada segmento da impugnação”[15].
Esta tem sido a posição seguida, de forma praticamente uniforme, pela jurisprudência do STJ que, como referido, de acordo com uma corrente, vinha sustentado que a decisão que, na perspetiva do recorrente, deve ser proferida quanto à concreta matéria de facto impugnada, devia igualmente constar das conclusões, enquanto a maioria sustentava que, essa resposta, tinha (e tem) de constar da motivação de recurso[16].
Ocorre que o diferendo verificado ao nível da jurisprudência do STJ foi solucionado pelo recente acórdão uniformizador de jurisprudência (AUJ) n.º 12/2023, publicado no Diário da República n.º 220, 1ª Série, de 14 de novembro de 2023, objeto de declaração de retificação n.º 25/2023, publicada no Diário da República, 1ª Série, n.º 230, de 28 de novembro de 2023,  proferido em 17/10/2023, no âmbito do Proc. n.º 8344/17.6T8STB.E1-A.S1, em que se uniformizou a seguinte jurisprudência: “Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil, o recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações”.  
Acresce precisar que a jurisprudência do STJ tem operado a distinção entre: a) ónus impugnatórios primários ou fundamentais de delimitação do objeto do recurso, onde os requisitos impostos ao recorrente se encontram ligados com o mérito ou demérito do recurso; e b) ónus impugnatórios secundários, que se prendem com os requisitos formais.
Quanto aos requisitos primários ou fundamentais de delimitação do objeto do recurso, neles se inclui a obrigação do recorrente de formular conclusões e nestas especificar os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados e que impugna e, bem assim, de indicar, nas alegação de recurso, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto que impugna e de ter de especificar os concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados que, na sua perspetiva, sustentam esse julgamento diverso da matéria de facto que impugna, requisitos esses sobre que versa o n.º 1 do art. 640º do CPC; e a jurisprudência, sem prejuízo do que infra se dirá, tem considerado que o enunciado critério de rigor se aplica de forma estrita, não admitindo quaisquer entorses, pelo que sempre que se verifique o incumprimento de qualquer um deles se impõe rejeitar o recurso da matéria de facto, na parte em que se verifique a omissão, sem que seja admitido despacho de convite ao aperfeiçoamento.
Já no que respeita aos ónus da impugnação secundários, são os que se encontram enunciados no n.º 2 do art. 640º, em que se consagra a obrigação do recorrente, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas que tenha sido gravada, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; e considera-se que, embora a observância desse ónus deva ser apreciado à luz do enunciado critério de rigor, não convém exponenciá-lo ao ponto de ser violado o princípio da proporcionalidade e seja denegada a reapreciação da decisão da matéria de facto com invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espírito do legislador”[17]
Argumenta-se que se está perante mero requisito de forma, destinado a facilitar a localização dos depoimentos relevantes no suporte técnico que contém a gravação da audiência, pelo que o cumprimento desse ónus tem de ser “interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não se justificando a imediata e liminar rejeição do recurso quando, apesar da indicação do recorrente não for totalmente exata e precisa, não exista dificuldade relevante na localização pelo tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento”[18].
Acresce precisar que mesmo em relação aos ónus de impugnação primários tem-se assistido, ao nível da jurisprudência do STJ, a um aliviar do enunciado critério de rigor, admitindo a apreciação do recurso ainda que as conclusões sejam omissas quanto à referência expressa dos concretos pontos da matéria de facto que o apelante impugna, desde que os factos impugnados resultem claramente identificados nas antecedentes alegações[19].
Assentes nas premissas que se acabam de enunciar, analisadas as alegações de recurso, constata-se que os apelantes cumpriram com os ónus impugnatórios primários do julgamento da matéria de facto previstos nas als. a) e c), do n.º 1 do art. 640º do CPC, na medida em que indicam, nas conclusões, os concretos pontos do julgamento da matéria de facto que impugnam (pontos 4º, 5º, 6º, 8º, 14º, 15º, 17º, 18º, 21º, 22º, 23º, 24º e 25º dos factos julgados provados na sentença recorrida e, bem assim, os pontos I), II) e V) dos factos nela julgados não provados) e indicam, na motivação do recurso e, inclusivamente, nas conclusões, a resposta que deve recair sobre cada um desses pontos (a facticidade julgada provada deve ser julgada não provada, e a julgada não provada deve ser julgada provada).
Todavia, com exceção do segmento do ponto 15º, em que a 1ª Instância julgou provado que: “(…) os Réus não pagaram o valor remanescente de 10.000,00 euros” do preço do veículo comprado pelo apelante marido à sociedade EMP01...., Lda. e, bem assim, da facticidade julgada não provada no ponto II (“Não se provou que AA, em setembro de 2016, tenha pago, em numerário, o montante de 15.000,00 euros à sociedade EMP01...”), os apelantes não deram cumprimento ao ónus impugnatório primário previsto na al. b), do n.º 1 do art. 640º do CPC, na medida em que não indicam, nem na motivação do recurso, nem nas conclusões, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem a decisão de facto diversa que postulam.
Na verdade, nas alegações de recurso, os apelantes, em sede de impugnação do julgamento da matéria de facto, limitaram-se a alegar que: “Tanto o adquirente da viatura, como os Réus, sempre alegaram e depuseram na confirmação de tal pagamento ter sido efetuado em numerário e na sua integralidade à sociedade vendedora”, passando a transcrever, de seguida, as passagens desses depoimentos em que sustentam essa sua impugnação. Após, adiantam que: “Se é certo e não ignoramos que a prova testemunhal é livremente apreciada pelo julgador, não menos certo é que sempre haverá que atender a que nem todos têm a mesma serenidade e capacidade de discernimento, impondo-se salientar que as únicas testemunhas inquiridas são os próprios intervenientes e participantes no negócio, verdadeiros interessados no desfecho da lide, pelo que era ao ora Autor quem competia a prova inequívoca dos factos que alega e, face aos referidos depoimentos não é segura a prova, para além da dúvida que o veículo tenha sido vendido ao Réu. Por outro lado, não se pode deixar de referir que o registo de propriedade da viatura foi averbado em nome de terceira pessoa e com base na respetiva declaração de venda que titula o inerente contrato de compra e venda”.  E concluem que: “Em consequência devem passar a elencar os factos não provados os consignados na sentença sob os n.ºs 4 a 6, 8, 14, 15, 17, 18, 21, 22, 23 e 24, e passar a constar dos factos provados os elencados em I), II) e V dos não provados”.
Ora, dir-se-á que, salvo melhor opinião, sendo o contrato de compra e venda o acordo mediante o qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço (art. 874º do CC), encontrando-se o contrato de compra e venda de veículo automóvel submetido ao princípio da liberdade de forma (art. 219º, ex vi, art. 875º do CC) - tratando-se, por isso, de um negócio consensual, que pode ser celebrado por escrito ou verbalmente e que, quando seja celebrado pela forma verbal, fica concluído mal se forme o mútuo consenso entre vendedor e comprador -, a circunstância do veículo automóvel objeto da compra e venda celebrada verbalmente, em maio de 2016, entre a sociedade EMP01...., Lda. e o apelante marido ter sido registado em nome de terceira pessoa, e da fatura referente a essa compra e venda ter sido também emitida pela sociedade vendedora em nome dessa terceira pessoa, mais concretamente, de AA, pai da apelante-mulher e sogro do apelante-marido (conforme foi julgado provado pela 1ª Instância nos pontos 4º, 8º, 10º e 11º da facticidade julgada provada), não obsta a que esse contrato de compra e venda tivesse sido celebrado, em termos efetivos, reais ou ontológicos, de forma verbal, entre aquela sociedade vendedora (a EMP01...., Lda.) e o apelante marido (comprador), mediante o qual a primeira, em maio de 2016, transferiu para a esfera jurídico-patrimonial do último a propriedade sobre o veículo, contra a obrigação de lhe pagar 15.000,00 euros a título de preço; nem significa que o identificado contrato de compra e venda de veículo automóvel seja nulo, por simulação; nem que, ao julgar provada a celebração desse contrato de compra e venda de veículo automóvel verbal, mediante recurso a prova testemunhal, a 1ª Instância tivesse infringido regras de direito probatório material, nomeadamente, a enunciada no art. 394º, n.º 2 do CC, que veda o recurso à prova testemunhal pelos simuladores a fim de provarem o acordo simulatório e/ou o negócio dissimulado.
Com efeito, uma coisa é o contrato de compra e venda de veículo automóvel - o qual sendo um negócio consensual, quando celebrado verbalmente fica concluído mal se forme o mútuo consenso entre vendedor (a sociedade EMP01..., Lda.) e comprador (o apelante marido), com o que opera os seus efeitos reais típicos (transferindo o direito de propriedade sobre o veículo do vendedor para o comprador) e obrigacionais (constituindo o vendedor na obrigação de entregar o veículo ao comprador e o último na obrigação de lhe pagar o preço nas condições acordadas) -, e outra, diversa, é a fatura e o documento destinado a registar o veículo objeto da compra e venda em nome do comprador, os quais são emitido na sequência da celebração do contrato de compra e venda, mas que não se confundem com este.
Daí que, a circunstância da fatura e do documento destinado ao registo terem, no caso sobre que versam os autos, na sequência do acordo celebrado entre a sociedade EMP01...., Lda. (vendedora) e o apelante marido (comprador) que se encontra explanado no ponto 8º dos factos provados na sentença recorrida, sido emitidos em nome de AA, o qual não é o efetivo comprador desse veículo, não determina a nulidade desse contrato, nomeadamente, por simulação, mas quando muito determinará a nulidade do registo da propriedade do veículo objeto daquele em nome da AA, matéria essa de que não cuidam os presentes autos.
Decorre do excurso antecedente que não tendo a 1ª Instância incorrido em qualquer violação de regras de direito probatório material ao julgar como provada a facticidade que vem impugnada pelos apelantes, impunha-se que os mesmos tivessem indicado, nas alegações de recurso, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo nele realizado, em que fundam o recurso, não consentindo o julgamento de facto realizado pelo julgador a quo, mas antes impondo o que propugnam, conforme lhes é imposto pela al. b), do n.º 2 do art. 640º do CC, o que não fizeram.
Note-se que ao cumprimento do identificado ónus impugnatório não basta a mera alegação genérica, em bloco (porque feita em relação à totalidade da facticidade que impugnam), dos apelantes de que o julgamento de facto realizado pela 1ª Instância se alicerçou nos depoimentos prestados pelos “próprios intervenientes e participantes no negócio, verdadeiros interessados no desfecho da lide”: era-lhes exigível que tivessem indicado os concretos meios de prova, em relação a cada um dos pontos da matéria de facto que impugnam, identificando os concretos documentos e prova pessoal (identificando as partes e as testemunhas, com a especificação dos concretos excertos das declarações ou depoimentos que as primeiras prestaram e, bem assim, dos depoimentos testemunhais, com indicação do início e do termo desses excertos, sem prejuízo de puderem proceder à transcrição dos mesmos) em que fundam a sua impugnação, por não consentirem o julgamento de facto que foi realizado, mas antes imporem o que propugnam.
Ora, não tendo os apelantes assim procedido, os mesmos incumpriram totalmente com o ónus impugnatório primário da al. b), do n.º 1 do art. 640º do CPC em relação à matéria de facto que impugnam, pelo que, com exceção do segmento do ponto 15º da facticidade julgada provada na sentença recorrida - em que se julgou provado que “os Réus não pagaram o remanescente de 10.000,00 euros” do preço do veículo automóvel comprado verbalmente pelo Réu-marido à sociedade EMP01.... Lda., bem como do ponto II dos factos julgados não provados na sentença, nos termos do art. 640º, n.º1, parte final, impõe-se rejeitar o recurso quanto ao julgamento de facto realizado pela 1ª Instância que vem impugnado pelos apelantes.
Nesta conformidade, rejeita-se o recurso interposto pelos apelantes quanto à impugnação do julgamento de facto que operam, com a identificada exceção, por incumprimento do ónus impugnatório primário do art. 640º, n.º 1, al. b) do CPC.

B.1- Do pagamento da totalidade do preço de compra do veículo automóvel pelos apelantes e/ou por AA à sociedade vendedora – ponto 15º dos factos julgados provados na sentença e ponto II dos factos nela julgados não provados.
A 1ª Instância julgou provado que:
“15- A sociedade EMP01... não emitiu o respetivo recebido, porquanto os Réus não pagaram o valor do remanescente de 10.000,00 euros”.
E julgou não provada a seguinte facticidade:
“II- Não se provou que AA, em setembro de 2016, tenha pago, em numerário, o montante de 15.000,00 euros à sociedade EMP01...”.
O julgador a quo fundamentou/motivou o julgamento de facto que assim realizou nos seguintes termos:
2) Do pagamento do preço acordado no contrato de compra e venda (factos provados n.º 14 e 15 e alínea ii) dos factos não provados)
Apreciemos, agora, a questão da prova do pagamento do preço do veículo alegado pelos Réus.
Interessa-nos aqui a prova do pagamento do preço do veículo pelos Réus, nos termos em que estes alegaram esse pagamento, ou seja: por terceiro (AA) em numerário, em duas prestações, uma de 5.000€ (sinal) e outra de 10.000€, sem recibo ou outro documento, pagamentos esses que não teriam sido testemunhados por ninguém a não ser o próprio AA e DD.
Neste caso, não dispomos de qualquer elemento de comprovação do depoimento de AA que refere ter pago o preço com entrega de dinheiro em numerário a FF, na condição de sócio gerente da EMP01..., sendo que este último a nega e mais ninguém assistiu à aludida entrega.
Para além disso, enfim, o próprio contexto em que é referido que esse pagamento teria ocorrido (uma entrega de 5.000€ a título de sinal e mais tarde uma entrega de 10.000€ para levantar o veículo) afigura-se-nos muito pouco plausível.
Efetivamente, não é comum que quantias elevadas sejam pagas através da entrega de dinheiro em mão e sem que o devedor se preocupe em ficar na posse de documento comprovativo do pagamento efetuado. Pelo contrário, o procedimento normalmente seguido neste tipo de operações pelo cidadão comum consistirá em efetuar o pagamento de modo a que o mesmo fique registado, designadamente através de transferência bancária ou cheque.
Ora, a compra de um automóvel não é manifestamente um dos casos de aquisição de bens do quotidiano, que se destinam a ser pagos de imediato e sem se pedir recibo de quitação.
Pelo contrário, trata-se de uma compra de um bem de valor avultado (€ 15.000,00).
Foi neste contexto de ausência de prova convincente do pagamento do valor do veículo pelo R., que o tribunal deu como não provado a alínea ii) dos factos não provados.
Assim, não ficou provado o pagamento do preço do veículo pelo R. (o comprador, aquele que se obrigou ao pagamento do preço), sendo que essa não prova, em função da regra de distribuição do ónus da prova atinente à afirmação de um facto extintivo da obrigação de pagar esse preço (o próprio pagamento), decorrente do artigo 342º, nº 2 do CC, conduz à prevalência da tese do A..
De resto, conforme acima já se aludiu, o Tribunal ficou convicto que o 1.º Réu pagou cerca de 5.000€ à EMP01..., para pagamento do preço acordado, por isso mesmo ter sido admitido por DD, o sócio gerente dessa empresa”.
Os apelantes impugnam o julgamento de facto assim realizado pelo julgador a quo com fundamento nos excertos do depoimento prestado por AA, pai da apelante mulher e sogro do apelante marido, em cujo nome foi registada a propriedade do veículo automóvel objeto da compra e venda (verbal) deste pelo apelante marido à sociedade EMP01...., Lda., pelo preço de 15.000,00 euros, bem como, nas declarações de parte prestadas em audiência final pelo próprio apelante-marido;  mas, antecipe-se desde já, sem razão.
Na verdade, a fim de deslindar o equívoco dos apelantes, cumpre esclarecer que, se nos termos do n.º 1 do art. 342º do CC, é sobre o apelado (autor) que impende o ónus da prova em como o contrato de compra e venda tendo por objeto o veículo automóvel, foi celebrado entre a sociedade EMP03...., Lda., enquanto vendedora, e os apelantes (réus), pelo preço de 15.000,00 euros (conforme foi por si alegado nos pontos 1º da p.i.), tendo este feito prova em como o identificado contrato foi celebrado verbalmente, em maio de 2016, entre sociedade EMP01...., Lda. e o apelante-marido, mediante o qual a primeira lhe vendeu o veículo automóvel pelo preço de 15.000,00 euros (cfr. ponto 4º da facticidade julgada provada na sentença recorrida, não impugnado validamente pelos apelantes), é já sobre os apelantes (devedores do preço de compra do veículo) que, nos termos do n.º 2 daquele art. 342º, impende o ónus da prova do pagamento do preço, por consubstanciar a exceção perentória do cumprimento daquele contrato.
Ora, conforme foi ponderado pela 1ª Instância na motivação/fundamentação do julgamento de facto que realizou, o depoimento prestado pela testemunha AA, assim como as declarações de parte que foram prestadas pelo apelante marido em audiência final, mostram-se totalmente imprestáveis para fundamentar um juízo positivo em como o identificado AA pagou o preço de 15.000,00 euros de compra do veículo à sociedade vendedora (a EMP01...., Lda.), atentas as insuficiências probatórias que o seu depoimento patenteia, o mesmo ocorrendo quanto às declarações de parte que foram prestadas pelo apelante marido em audiência final, insuficiências essas que a 1ª Instância teve o cuidado de concretizar na extensíssima e aprofundada motivação do julgamento de facto que realizou e que se encontra exarada na sentença recorrida, que aqui nos abstemos de transcrever.
Acresce dizer que, tal como foi ponderado pela 1ª Instância, à luz das regras do normal acontecer, não se antolha como razoável aceitar que AA fosse pagar à sociedade vendedora do veículo a considerável quantia de 15.000,00 euros, correspondente ao preço de aquisição do veículo automóvel por parte do apelante marido, em numerário, sem que tivesse tido o cuidado de se munir de documento comprovativo da efetivação desse pagamento, quando, inclusivamente, o veículo não lhe foi vendido, mas sim ao apelante marido, seu genro.
Finalmente, cumpre referir que a facticidade julgada provada nos pontos 17º a 25º da sentença recorrida (que os apelantes não impugnaram validamente, ao incumprirem com o ónus impugnatório primário do julgamento de facto previsto no art. 640º, n.º 1, al. b) do CPC) não consente que se julgue provado que AA e/ou os apelantes tivessem pago à sociedade EMP01...., Lda. a quantia de 10.000,00 euros, correspondente ao preço remanescente (não pago) por que que aquela vendeu o veículo ao apelante-marido (pelo preço de 15.000,00 euros).
Com efeito, conforme foi julgado provado nos pontos 17º e seguintes da sentença recorrida, por acordo verbal, celebrado em ../../2018, a sociedade EMP01.... declarou ceder ao Autor (apelado), o crédito que detinha sobre o 1º Réu (apelante-marido), no valor de 10.000,00 euros, correspondente ao preço relativo à venda do veículo automóvel que então permanecia em dívida; os Réus (apelantes) tiveram conhecimento desse acordo e deram o seu consentimento ao mesmo; em 9 de julho de 2018, entre o Autor (apelado) e o Réu-marido (apelante), foi celebrado um acordo verbal mediante o qual se obrigou a pagar ao  último aquela quantia de 10.000,00 euros em sessenta e sete prestações mensais, iguais e sucessivas, no valor de 150,00 euros cada uma, sendo a última prestação no valor de 100,00 euros, e acordaram que esse pagamento prestacional do preço ainda em dívida teria início quando a situação financeira do Réu (apelante) o permitisse ou, em alternativa, em 24 meses; o Réu-marido veio a liquidar ao Autor (apelado) as prestações que se encontram identificadas no ponto 23º da facticidade julgada provada na sentença, no valor global de 1.350.00 euros.
Ora, dir-se-á que, caso AA e/ou apelantes tivessem pago à sociedade vendedora do veículo (a EMP01...., Lda.) a totalidade do preço de aquisição deste (15.000,00 euros), naturalmente que os apelantes não teriam dado o seu consentimento ao acordo verbal celebrado, em ../../2018, entre a EMP01...., Lda. (sociedade vendedora do veículo) e o apelado (cessionário), mediante o qual aquela lhe cedeu o crédito de 10.000,00 euros, correspondente à parte do preço de aquisição do veículo que então ainda permanecia em dívida; nem o apelante teria celebrado com o apelado, em 09 de julho de 208, o acordo verbal em que se obrigou a pagar-lhe essa quantia em prestações mensais, nem lhe teria pago parte das prestações a que se vinculou nos termos desse acordo.
Daí que, salvo o devido respeito por entendimento contrário, longe da prova produzida impor o julgamento de facto propugnado pelos apelantes (cfr. art. 640º, n.º 1 do CPC), os factos já, em definitivo (por não terem sido validamente impugnados pelos apelados), julgados provados nos autos, de per se impõem o julgamento de facto realizado pela 1ª Instância.
Termos em que, na improcedência da impugnação do julgamento de facto operada pelos apelantes, mantém-se inalterado o ponto 15º da facticidade julgada provada na sentença sob sindicância e, bem assim, o ponto II da facticidade nela julgada não provada.

C- Mérito
C.1- Da validade do contrato de compra e venda de veículo automóvel verbal celebrado entre a EMP01...., Lda. e o apelante marido.
O contrato de compra e venda é aquele pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço (art. 874º do CC), sendo efeitos essenciais desse tipo contratual: a obrigação de transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito; a obrigação de entregar a coisa; e a obrigação de pagar o preço (art. 879º do CC).
Da definição legal do contrato de compra e venda, dos efeitos essenciais que dele decorrem e, bem assim, do disposto no art. 408º do CC, onde se lê que: “A constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as exceções previstas na lei”, decorre que se trata de um contrato oneroso, bilateral, com prestações recíprocas e dotado de eficácia real e obrigacional.
Com efeito, da mera celebração do contrato de contrato de compra e venda decorrem efeitos, simultaneamente, reais e obrigacionais para ambas as partes: o efeito real consiste na transferência da propriedade da coisa ou do direito da esfera jurídico-patrimonial do vendedor para a do comprador, que se verifica no momento da celebração do contrato e por efeito deste, se a coisa  já estiver determinada, salvo se o contrato respeitar a coisa futura (n.º 2 do art. 408º), ou tiver sido celebrado sob condição suspensiva ou com reserva de propriedade; os efeitos obrigacionais consistem em o vendedor se encontrar obrigado a efetuar a entrega da coisa vendida e do comprador estar obrigado ao pagamento do preço acordado, nas condições convencionadas[20], intercedendo entre essas obrigações um nexo sinalagmático ou de correspetividade.
Neste sentido, expendem Pires de Lima e Antunes Varela que: “Do teor do art. 874º resulta claramente a atribuição de natureza real, e não apenas obrigacional, ao contrato de compra e venda, o que resulta também, explicitamente, do art. 879º, al. a) (cfr., quanto à cessão de créditos, o art. 578º, n.º 1), e ainda do art. 408º, n.º 1, quando uma das prestações for a transferência de um direito real (cfr. art. 1317º, al. a)). Trata-se da conceção já tradicional entre nós, segundo a qual a transmissão da coisa (ou, hoje, do direito) tem por causa o próprio contrato, embora, por circunstâncias várias, o objeto possa ficar dependente de determinação, quando se trate de coisa futura, ou haja reserva de propriedade (art. 409º). O que não pode é estabelecer-se que a transferência do direito fique dependente de nova convenção, sem se desfigurar, com isso, a natureza do primeiro contrato. «A transmissão da propriedade, escreve Galvão Telles, ou do direito vendido não é produzido por novo ato, é gerada pela própria venda, que cumula com os efeitos pessoais, estabelecimento de obrigações entre as partes, o efeito real, translação do domínio. Este efeito dimana sempre da venda, ainda quando não é sua consequência imediata. Em regra, o comprador adquire a propriedade logo que celebra o contrato; mas pode haver um intervalo, maior ou menor, entre a compra e a aquisição: assim sucede na venda de coisas genéricas ou em alternativa, na venda de bens futuros, na venda sujeita a condição suspensiva. Enquanto a indeterminação do objeto não cessa pela individualização da coisa a entregar, dentro do género ou da alternativa, ou os bens se não tornam presentes ou a condição se não cumpre, o comprador não adquire a propriedade. A aquisição, portanto, é diferida, nestes casos, mas ainda então lança as suas raízes no contrato de compra e venda, de que tira origem, sem necessidade de interferência de um subsequente ato alienatório. O caráter real da venda significa que esta é causa de transmissão, seja transmissão imediata ou transmissão futura»”[21]
No ordenamento jurídico civil nacional vigora o princípio da liberdade de forma, nos termos do qual a validade da declaração negocial não depende da observância de forma especial, salvo quando a lei a exigir (art. 219º do CC), como acontece quanto ao contrato de compra e venda que tiver por objeto a compra e venda de bens imóveis, que o art. 875º do CC, declara só ser válido se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado, sem prejuízo do disposto em lei especial.
No caso dos autos, provou-se que, em maio de 2016, a sociedade EMP01...., Lda., na pessoa do seu gerente, DD, celebrou um acordo verbal com o 1º Réu, BB, pelo qual se obrigou a entregar ao último o veículo automóvel da marca ..., com a matrícula ..-OX-.., contra o pagamento de 15.000,00 euros, a ser pago em parte através da prestação de serviços e outra parte em dinheiro em prazo não concretamente determinado, mas não inferior a um ano, vindo a EMP01...., na execução desse contrato a entregar o veículo ao 1º Réu, que lhe pagou 5.000,00 euros (cfr. pontos 4º, 5º, 6º e 14º dos factos apurados).
Mais se apurou que, no âmbito daquele acordo, o 1º Réu acordou com a sociedade EMP01...., Lda. que o veículo seria registado a favor do sogro daquele, AA, e que a fatura de venda seria também emitida em nome do identificado AA, devido às dívidas que o 1º Réu tinha para com terceiros, na sequência do que, a EMP01...., Lda. emitiu, em nome de AA, a fatura referente à venda do veículo e este veio a ser registado em nome do último (cfr. pontos 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º dos factos apurados).
O contrato de compra e venda de veículo automóvel tem por objeto uma coisa móvel, não estando, por isso, submetido às exigências de forma enunciadas no art. 875º do CC, mas antes à regra geral do art. 219º do mesmo diploma, ou seja, ao princípio da liberdade de forma ou da consensualidade, podendo, por isso, ser celebrado verbalmente ou por escrito. Assim, quando o contrato de compra e venda de veículos automóveis seja celebrado verbalmente, a respetiva prova pode fazer-se por qualquer meio admitido em direito, designadamente, através de prova testemunhal[22].
Advogam os apelantes que a sociedade vendedora do veículo sobre que versam os autos emitiu a fatura respeitante à venda deste em nome de AA e que este último figura, no registo automóvel, como sendo o proprietário do mesmo. Deixam nessa alegação implícito que: por um lado, não só a 1ª Instância não podia ter julgado provado que o contrato de compra e venda do veículo foi celebrado verbalmente, em maio de 2016,  entre a sociedade EMP01...., Lda. e o apelante-marido, mediante o qual a primeira lhe vendeu o veículo em causa pelo preço de 15.000,00 euros, por tal contrariar o teor daquela fatura e, bem assim, a titularidade do direito de propriedade sobre o mesmo que se encontra inscrita no registo; e, por outro, que o identificado contrato de compra e venda teria sido celebrado entre aquela sociedade, enquanto vendedora, e AA, enquanto comprador. Logo, o tribunal não podia ter concluído que o devedor do preço de venda desse veículo fosse o apelante; mas sem razão.
Na verdade, conforme antedito, o contrato de compra e venda de veículo automóvel tem natureza consensual, podendo ser celebrado por acordo verbal ou por escrito; e produz os seus efeitos reais (salvo as exceções previstas na lei) e obrigacionais por mera decorrência da sua celebração e por efeito deste, ou seja, no caso de contrato verbal, mal se forme o mútuo consenso entre vendedor e comprador.
Daí que a celebração verbal de um contrato de compra e venda de veículo automóvel não é só juridicamente válida, como a sua celebração pode provar-se por qualquer meio legalmente admissível, incluindo a prova testemunhal.
Quanto aos efeitos reais do contrato de compra e venda de veículo automóvel, salvo as exceções previstas na lei, que acima se enunciaram (não verificáveis quanto ao contrato de compra e venda sobre que versam os autos, dado que, à data da sua celebração verbal, em maio de 2016 - entre a sociedade EMP01...., Lda. e o apelante marido, mediante o qual a primeira lhe vendeu o veículo de matrícula ..-OX-.., pelo preço de 15.000,00 euros -, o veículo em causa, não só já se encontrava determinado e era existente, como os contratantes não subordinaram o contrato que celebraram a qualquer condição suspensiva ou a reserva de propriedade),  os mesmos  produzem-se à data da sua celebração  e por efeito desta. Ou seja, logo que se formou o mútuo consenso entre a sociedade vendedora (a EMP01...., Lda.) e o comprador (apelante marido), transferiu-se automaticamente a propriedade sobre o veículo da esfera jurídico-patrimonial da primeira para a do segundo; e também se produziram os efeitos obrigacionais inerentes a este tipo contratual, ficando a vendedora (sociedade EMP01...., Lda.) obrigada a entregar o veículo vendido ao comprador (apelante marido) e este ficou constituído na obrigação de lhe pagar o preço acordado nas condições convencionadas (isto, independentemente de, na sequência do acordo que celebraram e que se encontra explanado no ponto 8º dos factos apurados, a sociedade vendedora ter emitido a fatura relativa àquela compra e venda, não em nome do efetivo comprador daquele, mas antes em nome de AA, e deste figurar inscrito no registo como proprietário dessa viatura).
Na verdade, contrariamente ao que parece ser entendimento dos apelantes, para além do contrato de veículo automóvel não se confundir com a fatura emitida na sequência da celebração do contrato de compra e venda que lhe serve de base, nem com o requerimento de registo automóvel que venha a ser emitido para inscrição do veículo a favor do comprador, na sequência da celebração daquele, no ordenamento jurídico nacional o registo automóvel tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respetivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico (art. 1º, do D.L. n.º 54/75, de 12/02, que aprovou o sistema de registo da propriedade automóvel, na sua 12ª versão, aprovada pela Lei n.º 39/2008, de 11/08, vigente em maio de 2016, data da celebração do contrato verbal de compra e venda sobre que versam os autos), não tendo natureza constitutiva de direitos, nomeadamente, do direito de propriedade.
Neste sentido, lê-se no art. 5º, n.º 1, al. a) daquele diploma e na apontada redação, estarem “sujeitos a registo o direito de propriedade sobre veículos automóveis”.
Por sua vez, lê-se no art. 25º, n.º 1, al. a), do Regulamento do Registo de Automóveis, aprovado pelo D.L. n.º 55/75, de 12/02, também na sua 12ª versão, aprovada pelo D.L. n.º 201/2015, de 17/09, vigente em maio de 2016, que: “O registo de propriedade do veículo automóvel adquirido por contrato verbal de compra e venda pode ser efetuado em face de requerimento subscrito pelo comprador e confirmado pelo vendedor, através de declaração de venda apresentada com o pedido de registo”.
Finalmente, nos termos do art. 7º do Cód. Reg. Predial, aprovado pelo D.L. n.º 224/84, de 06/07, na sua 32ª versão, aprovada pelo D.L. n.º 201/2015, de 17/09, vigente em maio de 2016, aplicável ao registo automóvel por via do disposto no art. 29º do sistema de registo da propriedade automóvel, na versão atrás enunciada, lê-se que: “O registo definitivo constituiu presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.
Essa presunção é, todavia, nos termos do n.º 2, do art. 342º do CC, ilidível, mediante prova em contrário, tratando-se, portanto, de uma presunção iuris tantum, que pode ser ilidida por qualquer interessado, mediante a alegação e prova de que quem figura no registo como proprietário do veículo não é o seu legitimo proprietário, mas antes que essa propriedade é sua, por ter comprado o veículo em causa por contrato de compra e venda verbal.
Aliás, a ilustrar o que se vem dizendo, de que o contrato de compra e venda de veículo automóvel não se confunde com o requerimento para inscrição no registo na sequência da celebração daquele, aponta-se o já enunciado art. 25º do Regulamento do Registo Automóvel, em que é o próprio legislador a estabelecer nele claramente a distinção entre, por um lado, o contrato de compra e venda de veículo automóvel verbal, e por outro, o requerimento de registo automóvel, ao prever que o registo de propriedade de veículo automóvel adquirida por contrato verbal de compra e venda pode ser efetuada em face de requerimento subscrito pelo comprador e confirmado pelo vendedor, através de declaração de venda apresentada com o pedido de registo.
Daí que o contrato de compra e venda de veículo automóvel não se confunda com o requerimento para registo do direito de propriedade deste na sequência da sua celebração.
O requerimento de registo automóvel é tipicamente um requerimento formulado pelo comprador e confirmado pelo vendedor, em impresso próprio, destinado a promover o registo da transmissão da propriedade, mas não se confunde com o contrato de compra e venda, que é o instrumento apto a transmitir a propriedade do veículo do vendedor para o comprador.
Por isso, a declaração feita pelo vendedor no requerimento de registo automóvel, confirmando falsamente em como vendeu o veículo automóvel ao requerente deste - como aconteceu no caso dos autos por parte da sociedade vendedora (EMP01...., Lda.), que, na execução do acordo a que chegou com o apelante marido, a que alude o ponto 8º da facticidade apurada (pessoa que comprou, efetiva e ontologicamente, o dito veículo àquela), levando a que a propriedade deste fosse inscrita no registo em nome de AA -, não tem a virtualidade de substituir o contrato de compra e venda, nem se confunde com o mesmo; e nem é apta a impedir a prova, através de qualquer meio legalmente admissível (incluindo a testemunhal), em como o contrato de compra e venda do veículo foi celebrado verbalmente com o apelante marido, para quem foi validamente transferida a propriedade daquele, mal se formou o mútuo consenso entre vendedor e comprador e por mero efeito da sua celebração. Como tal, o apelante marido é, assim, o legítimo proprietário do veículo (e não quem figura no registo como sendo seu proprietário, ou seja, AA); e é também quem se encontra constituído na obrigação contratual de pagar o preço convencionado ao vendedor.
Daí que se compreenda que, destinando-se o registo a dar publicidade aos factos a ele sujeitos, seja entendimento doutrinal e jurisprudencial pacífico que o mesmo não tem efeitos constitutivos do direito de propriedade[23].
Resulta do que se vem dizendo que, não é pela circunstância da sociedade vendedora ter emitido a fatura da compra e venda do veículo automóvel de matrícula ..-OX-.. em nome de AA, e de ter confirmado falsamente, no requerimento de registo automóvel, ter vendido o mesmo ao último, e de, nessa sequência, a propriedade sobre o veículo ter sido inscrita no registo em nome daquele, que impede que se prove, através de qualquer meio de prova, a celebração verbal, e juridicamente válida, do contrato de compra e venda tendo por objeto o veículo entre a sociedade EMP01...., Lda. e o apelante marido, mediante o qual aquela o vendeu ao último, pelo preço de 15.000,00 euros, como aconteceu nos autos.
Aliás, tendo o contrato de compra e venda celebrado verbalmente, em maio de 2016, entre a sociedade EMP01...., Lda. e o apelante marido, produzido os seus efeitos reais (transferindo a propriedade sobre o veículo da primeira para a segunda) e obrigacionais (constituindo a sociedade vendedora na obrigação de entregar o veículo ao apelante marido e o último na obrigação de lhe pagar o preço de 15.000,00 euros, nas condições acordadas), mal se formou o mútuo consenso entre eles e por mero efeito deste, não só o apelante marido passou a ser o efetivo e real proprietário desse veículo, como se constituiu devedor do preço acordado (15.000,00 euros) perante a sociedade vendedora, independentemente de terem acordado que a fatura respeitante a essa venda seria emitida em nome de AA, a favor de quem também seria inscrita a propriedade do veículo no registo.
Aliás, a pretensa nulidade que os apelantes assacam ao contrato de compra venda celebrado verbalmente, em maio de 2016, mediante o qual a sociedade EMP01...., Lda. vendeu o veículo automóvel de matrícula ..-OX-.. ao apelante marido, contra o pagamento de 15.000,00 euros (cfr. ponto 4º da facticidade apurada), não afeta o identificado contrato de compra e venda, mas antes o acordo referido no ponto 8º da facticidade provada, a fatura que, na sequência dele, foi emitida falsamente pela sociedade vendedora em nome de AA, bem como, o requerimento de registo automóvel em que essa sociedade vendedora, também falsamente, confirmou ter vendido o mesmo àquele sujeito e, bem assim, o registo que, na sequência desse requerimento, foi efetuado quanto ao veículo em causa, questões essas de que, todavia, não cuidam os presentes autos.
Decorre do excurso antecedente improcederem todos os fundamentos de recurso aduzidos pelos apelantes que se acabam de enunciar e de apreciar.

C.2- Do contrato de cessão de crédito.
Advogam os apelantes que o contrato de cessão de créditos celebrado verbalmente, em julho de 2018, entre a sociedade EMP01...., Lda. e o apelado, mediante o qual aquela, com o conhecimento e o consentimento dos primeiros, declarou ceder ao último o crédito de 10.000,00 euros que detinha sobre o apelante marido, correspondente ao preço do veículo que então permanecia em dívida (cfr. pontos 17º e 18º dos factos apurados) é nulo, uma vez que: “No presente processo, o Autor, cessionário, não se deteve na caracterização do negócio base concluído com o cedente; mas, quanto ao crédito cedido, alegou que ele tem origem no pagamento de uma viatura a terceiro por contraponto à celebração de um contrato de crédito/mútuo entre o cedente e os Réus no valor de 10.000,00 euros”, o qual seria nulo por não ter sido observada a forma legalmente prescrita para a sua celebração.
Se bem interpretamos a alegação dos apelantes, os mesmos advogam que o apelado teria alegado, em sede de petição inicial, que o crédito de dez mil euros que lhe foi cedido pela sociedade vendedora e correspondente ao preço de compra do veículo automóvel que alegadamente permanecia ainda em dívida, emerge de um contrato de mútuo que teria sido celebrado entre os mesmos e a sociedade EMP01...., Lda., mediante a qual esta lhes teria emprestado a quantia de dez mil euros para financiar a aquisição do veículo que aqueles lhe compraram e, bem assim, que teria sido também essa versão dos factos que acabou por ser provada na sentença recorrida.
 Ora, nem o apelado alegou na petição inicial que a sociedade EMP01...., Lda. tivesse emprestado aos apelantes (réus) a quantia de 10.000,00 euros que aquela lhe teria cedido, correspondente ao preço de venda do veículo que então se encontraria em dívida, financiando a aquisição pelos apelantes do veículo que o apelante marido lhe comprou, mas sim que: “Em maio de 2016, os Réus adquiriram à sociedade EMP01..., Sociedade Unipessoal, Lda.”, o veículo automóvel marca ..., com a matrícula ..-OX-.., pelo preço de 15.000,00 euros”, dos quais apenas pagaram “à referida sociedade a quantia de 5.000,00 euros, tendo ficado por pagar o valor remanescente de 10.000,00 euros” (cfr. pontos 1º, 4º e 5º da p.i.); e  nem essa versão dos factos dos apelantes foi a que foi julgada pela 1ª Instância, mas antes a que consta dos pontos 4º, 5º, 6º e 14º (“Em maio de 2016, a sociedade EMP01...., na pessoa do seu representante legal DD, celebrou um acordo verbal com o 1º Réu BB, pelo qual aquele se obrigou a entregar ao 1º Réu o veículo automóvel marca ..., com a matrícula ..-OX-.., contra o pagamento do valor monetário de 15.000,00 euros a efetuar pelo 1º Réu. Alguns dias depois, a EMP01.... entregou o veículo ao 1º Réu. Atenta a relação de amizade e de confiança existente entre DD e o Réu, a empresa EMP01.... concedeu ao Réu a possibilidade de liquidar o preço em parte através da prestação de serviço à EMP01.... e outra parte através de entregas em dinheiro, sempre que tal lhe fosse possível, em prazo não concretamente determinado, mas não inferior a um ano. O 1º Réu pagou à EMP01... a quantia de 5.000,00 euros tendo sido uma parte não concretamente determinada através da prestação de serviços à EMP01... e uma parte não concretamente determinada através de entregas em numerário”).
Daí que, segundo a versão fáctica que foi alegada pelo apelado na petição inicial e a que se quedou como provada na sentença, o crédito de dez mil euros que a sociedade EMP01...., Lda. cedeu ao apelado, por acordo verbal que celebraram em julho de 2018 (cfr. ponto 17º dos factos apurados) emerge do contrato de compra e venda verbal, celebrado em ../../2016, entre aquela sociedade e o apelante marido, mediante o qual aquela vendeu a este o veículo automóvel com a matrícula ..-OX-.., pelo preço de 15.000,00 euros, dos quais 10.000,00 euros ainda se encontravam em dívida à data da cessão desse crédito pela sociedade vendedora ao apelado. E não de um contrato de mútuo mediante o qual a dita sociedade tivesse financiado a aquisição pelos apelantes a aquisição desse veículo.
Termos em que, sem mais considerações, por desnecessárias, improcede este fundamento de recurso.
Sustentam os apelantes que, “no caso dos autos, nunca se poderá verificar qualquer cessão do crédito, na medida em que até foi dado por não provado que a sociedade EMP01...., vendedora do veículo, tivesse a alegada dívida de 10.000,00 euros para com o Autor e que este invoca como substrato da alegada cessão de crédito”; mas novamente sem razão, na medida em que, ao assim alegarem, é indiscutível confundirem o contrato mediante o qual a EMP01.... Lda. cedeu ao apelado o crédito que detinha sobre o apelante marido, no montante de 10.000,00 euros, correspondente ao preço do veículo automóvel que então ainda permanecia em dívida (contrato de cessão de créditos), em relação ao qual os mesmos são alheios, não sendo nele partes, nem terem de consentir na sua celebração, com o contrato constitutivo do crédito cedido (contrato base), que é o contrato de compra e venda celebrado verbalmente, entre a cedente, enquanto vendedora do veículo automóvel, e o apelante marido (comprador do veículo em causa).
Vejamos.
Face à previsão legal do art. 577º do CC, a cessão de créditos pode ser definida “como o contrato pelo qual o credor transmite a terceiro, independentemente do consentimento do devedor, a totalidade ou uma parte do seu crédito”[24].
A cessão de créditos é, assim, o acordo celebrado entre cedente e cessionário mediante o qual o primeiro transfere para o último um crédito de que é titular perante uma terceira pessoa e que emerge de um outro negócio jurídico, constitutivo do crédito cedido, independentemente do consentimento do devedor desse crédito.
O contrato de cessão de créditos pode ter na sua base causas e finalidades distintas prosseguidas por cedente e cessionário, na medida em que o fundamento da sua celebração pode estar uma venda, uma doação, uma dação em cumprimento, uma dação pro solvendo ou um negócio de garantia em benefício doutro crédito. Por isso, a cessão de créditos é um negócio causal, mas de causa variável ou policausal[25].
Adiante-se que, salvo quando se trate de cessão de créditos hipotecários e a hipoteca recaia sobre bens imóveis (art. 578º, n.º 2 do CC), o contrato de cessão de créditos encontra-se submetido ao princípio geral da consensualidade ou da liberdade de forma, pelo que, salva a identificada exceção, o contrato de cessão pode ser celebrado pela forma verbal ou escrita.
Quando seja celebrado pela forma verbal, o contrato de cessão de créditos fica concluído mal se forme o mútuo consenso entre cedente e cessionário, altura que produz os seus efeitos, incluindo, o seu efeito principal de transferência do direito de crédito do cedente para o cessionário, e por efeito dele.
Porque assim é, compreende-se que, apesar da celebração do contrato de cessão de créditos não estar dependente do consentimento do devedor do crédito cedido, que não é parte daquele contrato, nos termos do n.º 1, do art. 583º do CC, os efeitos da transmissão do crédito por ele operada apenas opere os seus efeitos jurídicos em relação ao devedor a partir do momento em que a cessão lhe tenha sido notificada pelo cedente ou pelo cessionário, ainda que extrajudicialmente, ou desde que aceite expressa o tacitamente a cessão. Daqui decorre que o pagamento feito pelo devedor ao cedente, na ignorância do contrato de cessão de créditos por ele antes celebrado e mediante o qual deixou de ser credor daquele, passando essa qualidade a ser detida pelo cessionário, não deixa de ser válido, porquanto a cessão de créditos não lhe é oponível; mas o cedente está obrigado a restituir ao cessionário aquilo que indevidamente recebeu, nos termos e com as limitações próprias do enriquecimento sem causa[26].
Acresce dizer que o crédito em que o cessionário fica investido na sequência do contrato de cessão de créditos, e por via deste, é o mesmo que pertencia ao cedente. Por isso, na falta de convenção em contrário, a cessão do crédito importa: a transmissão, para o cessionário, das garantias e outros acessórios do direito transmitido, que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente (art. 582º, n.º 2 do CC); o cedente é obrigado a entregar ao cessionário os documentos e outros meios probatórios do crédito, que estejam na sua posse e em cuja conservação não tenha interesse legítimo (art. 586º do CC); garante ao cessionário a existência e a exigibilidade do crédito ao tempo da cessão, nos termos aplicáveis ao negócio gratuito ou oneroso, em que a cessão se integra (n.º 1, do art. 587º do CC); e, inclusivamente, garante a solvabilidade do devedor se a tanto se tiver expressamente obrigado (n.º 2, do mesmo art. 587º); assistindo, por sua vez, ao devedor do crédito cedido o direito de opor ao cessionário, ainda que este os ignorasse, todos os meios de defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente, com ressalva dos que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão (art. 585º do CC).
Com efeito, transmitindo o cedente, por via do contrato de cessão de créditos, ao cessionário o crédito que detinha sobre o seu terceiro devedor, quando nem sequer é requerido o consentimento deste para a cessão, “o devedor não pode, em princípio, ser colocado perante o cessionário numa situação inferior àquela em que se encontrava diante do cedente”. Daí que, nos termos do art. 585º, o devedor possa opor ao cessionário todos os meios de defesa que poderia invocar contra o cedente, com ressalva dos que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão. “O devedor pode impugnar a existência do crédito ou invocar contra a pretensão do cessionário as mesmas exceções (dilatórias ou perentórias) a que lhe era lícito recorrer contra o cedente. Poderá, assim, alegar contra o cessionário o pagamento ou qualquer outra causa extintiva do crédito, tal como pode invocar o erro, o dolo, a coação, a simulação, etc., que afetem a validade do contrato que serviu de fonte ao crédito cedido”[27].
Mas já não poderá invocar contra o cessionário qualquer exceção que se verifique em relação ao contrato de cessão de crédito celebrado entre este e o cedente, na medida em que o devedor é terceiro em relação a esse contrato, no qual nem sequer tem de consentir.
Para além do devedor ser alheio às vicissitudes de que padeça o contrato de cessão de créditos, este nem sequer em nada o prejudica.
Neste sentido escreve Antunes Varela serem “irrelevantes para o devedor (debitor cessus) os vícios do contrato de cessão: se for notificado da cessão, ou dela tiver conhecimento por outra via, e pagar a dívida ao cessionário, o pagamento efetuado pelo  debitor cessus conservará a sua validade e eficácia, ainda que a cessão venha posteriormente a ser declarada nula ou anulada”[28].
Revertendo ao caso dos autos, o facto do apelado não ter feito prova em como a sociedade vendedora do veículo ao apelante marido (a EMP01...., Lda.) tivesse um débito para com o mesmo de dez mil euros (cfr. ponto III dos factos não provados), e que tivesse sido por via desse débito que, em julho de 2018, essa sociedade cedeu o crédito de igual montante que detinha sobre o apelante marido, correspondente ao preço da viatura que lhe vendeu e que então permanecia em dívida, diz única e exclusivamente respeito à relação contratual estabelecida entre aquela sociedade (cedente) e o apelado (cessionário), ou seja, ao contrato de cessão de créditos. Os apelantes são alheios a esse contrato de cessão de créditos, em que não intervieram e em cuja celebração nem tinham de consentir, sendo, por isso, alheios às vicissitudes de que esse contrato de cessão possa enfermar, as quais nada os afetam e que, por isso, não podem opor ao cessionário.
Destarte, o facto de o apelado não ter feito prova em como a sociedade EMP01...., Lda. tivesse um débito para com o mesmo de dez mil euros e que tivesse sido por via deste débito que aquela celebrou o contrato de cessão do crédito de dez mil euros que detinha sobre o apelante-marido, contrariamente ao pretendido pelos apelantes, não obsta a que se considere validamente celebrado o contrato de cessão de créditos entre a cedente (EMP01...., Lda.) e o cessionário (apelado) e produzidos os seus efeitos translativos do crédito de dez mil euros que a primeira detinha sobre o apelante marido por via do contrato de compra e venda do veículo automóvel que com este celebrou, tal como foi decidido pela 1ª Instância, improcedendo este fundamento de recurso.
Finalmente, amalgamando impugnação do julgamento da matéria de facto com impugnação do julgamento da matéria de direito (o que, de resto, é uma constante ao longo das suas alegações de recurso), os apelantes concluem as suas alegações insistindo que a prova produzida impõe que se conclua que o preço do veículo já se encontra pago, a propósito do que já nos pronunciámos no lugar próprio, ou seja, em sede de impugnação do julgamento da matéria de facto, onde concluímos pela improcedência deste fundamento de recurso
Resulta do excurso antecedente, improcederem todos os fundamentos de recurso invocados pelos apelantes impondo-se, em consequência, julgar a apelação improcedente e confirmar a sentença recorrida.
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Sumário (elaborado pelo relator – art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil).
1- O contrato de compra e venda de veículo automóvel encontra-se submetido ao princípio da liberdade de forma ou da consensualidade, pelo que pode ser celebrado verbalmente ou por escrito, podendo a prova da sua celebração verbal fazer-se por qualquer meio de prova legalmente admissível, incluindo a prova testemunhal.
2- Quando seja celebrado verbalmente, o contrato de compra e venda de veículo automóvel fica concluído mal se forme o mútuo consenso entre vendedor e comprador, operando-se, nesse momento e por efeito da sua celebração, os seus efeitos reais (transferência do direito de propriedade sobre o veículo do vendedor para o comprador) e obrigacionais (constituição do vendedor na obrigação de entregar o veículo ao comprador, e constituição deste na obrigação de pagar ao primeiro o preço de compra do veículo, nas condições que foram acordadas).
3- O contrato de compra a venda de veículo automóvel não se confunde, por isso, com o requerimento para o registo de veículo automóvel, em que, na sequência da celebração verbal daquele contrato, a pedido do comprador, o vendedor confirmou (falsamente) ter vendido o veículo objeto da compra e venda a terceira pessoa (que não é o efetivo e real comprador do mesmo), nem com a fatura que o vendedor emitiu em nome desse terceiro.
4- O registo não tem natureza constitutiva dos direitos que a ele se encontrem sujeitos, constituindo mera presunção ilidível (mediante prova em contrário), de que o direito registado existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.
5- A cessão de créditos é o contrato mediante o qual o credor (cedente) transmite a terceiro (cessionário), independentemente do consentimento do devedor do crédito cedido, a totalidade ou parte desse crédito, o qual emerge de um outro negócio (negócio constitutivo do crédito cedido).
6- O crédito cedido pelo cedente ao cessionário (por via da celebração do contrato de cessão de créditos entre eles celebrado e por efeito dele) é o mesmo que pertencia ao cedente, pelo que o devedor pode opor ao cessionário todas as exceções dilatórias e perentórias que podia opor ao cedente, com ressalva das que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão.
7- Mas o devedor já não pode opor ao cessionário quaisquer vícios de que padeça o contrato de cessão, por não ser parte desse contrato, nem nele ter de consentir e por a celebração do mesmo em nada o prejudicar.
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V- Decisão

Nesta conformidade, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar a presente apelação improcedente e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.
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Custas da apelação pelos apelantes (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
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Notifique.
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Guimarães, 18 de abril de 2024

José Alberto Moreira Dias – Relator
Maria João Marques Pinto de Matos – 1ª Adjunta
Rosália Cunha – 2ª Adjunta             

  
[1] Ferreira de Almeida, “Direito Processual Civil”, vol. II, 2015, Almedina, págs. 395 e 396.
[2] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, pág. 104.
[3] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, ob. cit., pág. 127.
[4] Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, pág. 74, onde postula que “A questão da legitimidade é essencialmente uma questão de posição das partes em relação à lide”.
[5] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, ob. cit., pág. 135.
[6] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1º, 4ª ed., Almedina, pág. 93; Paulo Pimenta, “Processo Civil Declarativo”, Almedina, 2014, págs. 69 e 70, em que expende: “… a legitimidade consiste numa posição concreta da parte perante uma causa. Por isso, a legitimidade não é uma qualidade pessoal, antes uma qualidade posicional da parte face à ação, ao litígio que aí se discute. (…). Conforme resulta da redação que a Reforma de 1995/96 deu ao n.º 3 do art. 26º do CPC de 1961 – redação mantida agora no art. 30º -, foi adotada a teoria que faz corresponder a legitimidade das partes à titularidade da relação controvertida descrita pelo autor na petição inicial”.
[7] Ac. STJ. de 14/02/2012, Proc. 6823/09.3TBRG.G1.S1, in base de dados da DGSI, onde se encontram todos os acórdãos a que se venha a fazer referência, sem menção em contrário.
[8] Ac. RG. de 01/06/2017, Proc. 1227/15.6T8BGC.C1.
[9] António Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4ª ed., Almedina, pág. 153.
[10] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., Almedina, pág. 797.
[11]António Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 228.
[12] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., pág. 798, nota 8.
[13] Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 155.
[14] Abrantes Geraldes, in ob. cit., pág. 159; Ac. RC, de 11.07.2012, Proc. n.º 781/09, em que se lê que, “especial ónus de alegação, a cargo do recorrente, deve ser cumprido com particular escrúpulo ou rigor”, constituindo “simples decorrência dos princípios estruturantes da cooperação e lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última extremidade, a seriedade do próprio recurso”.
No mesmo sentido: Acs. S.T.J., de 18/11/2008, Proc. 08A3406; 15/09/2011, Proc. 1079/07.0TVPRT.P.S1; 04/03/2015, Proc. 2180/09.0TTLSB.L1.S2; 01/10/2015, Proc. 824/11.3TTLSB. L1. S1; 26/11/2015, Proc. 291/12.4TTLRA.C1; 03/03/2016, Proc. 861/13.3TTVIS.C1.S1; 11/02/2016; Proc. 157/12.8TUGMR.G1.S1.
[15] Abrantes Geraldes, ob. cit., págs. 158 e 159.
[16] Acs. do STJ de 26/09/2018, Proc. 141/17.5T8PTM.E1-S1; de 05/09/2018, Proc. 15787/15.8T8PRT.P1-S2; de 01/03/2018, Proc. 85/14.2TTMAI.P1.S1; de 06/06/2018, Proc. 4691/16.2T8LSB.L1.S1; de 06/06/2018, Proc. 1474/16.38CLD.C1.S1; de 06/06/2018, Proc. 552/13.5TTVIS.C1.S1; e de 16/05/2018, Proc. 2833/16.7T8VFX.L1.S1.
[17] Abrantes Geraldes, in ob. cit., págs. 160 e segs; Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., págs. 797 e 798, nota 6.
[18] Ac. STJ., de 29/10/2015, Proc. n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1.
[19] Neste sentido, Acs., do STJ, de 08/02/2018, Processo nº 765/13.0TBESP.L1.S1; de 08/02/2018, Processo nº 8440/14.1T8PRT.P1.S1; de 06/06/2018, Processo nº 552/13.5TTVIS.C1.S1, e de 13/11/2018, Processo nº 3396/14, este último inédito.
[20] Ac. R.E.; de 12/03/2015, Proc. 413/12.5TBVVC.E1.
[21] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. II, 3ª ed., Coimbra Editora, 1986, pág. 166.
[22] Ac. R.P., de 13/07/2021, Proc. 1080/19.0T8VCD.P1.
[23] Acs. STJ., de 24/02/1977, Proc. 066435; R.P., de 09/02/2023, Proc. 1067/20.0T8FAR.P1; de 13/07/2021, Proc. 1080/19.0T8VCD.P1.
[24] Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. II, 7ª ed., Coimbra Editora, pág. 295.
[25] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, 1987, págs. 593 e 594.
[26] Antunes Varela, ob. cit., págs. 319 a 320.
[27] Antunes Varela, ob. cit., pág. 328.
[28] Antunes Varela, ob. cit., pág. 301.